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Blog do Juca Kfouri

Um vespertino de Ubá

Juca Kfouri

24/09/2021 18h48

POR LUIZ GUILHERME PIVA

1. Allegro

Depois de muitos anos inativo, o Aymorés, principal time de Ubá, voltou no início dos anos oitenta. Empresários e torcida mobilizaram recursos e apoios, reformaram o estádio e trouxeram alguns jogadores de fora, semiprofissionalizados.

E, de fato, montou-se um time forte, que entusiasmava. Entre os quatro ou cinco importados, todos de bom nível, destacava-se o Roque. Cercado de lendas, de sagas: estudante de engenharia em Ouro Preto, jogara no América ou no Cruzeiro, mas parara por conta do joelho, diziam. Não dava para o profissional, mas para o amador, uma vez por semana, era mais do que suficiente.

Não treinava. Chegava para os jogos e depois deles partia.

Centroavante, técnico, rápido, habilidoso e inteligente, tornou-se artilheiro e ídolo, com atuações históricas, nos relatos que me chegavam (eu já não morava na cidade). Craque, muito acima de todos.

Assisti-o somente uma vez: fiquei nos degraus atrás do gol, vendo-o de frente para a zaga e o goleiro adversários. Não era exagero. Lembrou-me o Careca, do Guarani, do São Paulo e do Napoli.

Com ele o Aymorés voltou a ser um grande time na região, ganhou títulos e encheu de alegria as tardes de domingo dos seus torcedores.

Roque brilhou por alguns – poucos – anos. E, tal como os heróis misteriosos, se foi com o futuro em brumas, desconhecido.

2. Adagio

Nessa época houve um jogo, pelo campeonato regional, do Aymorés contra o Industrial. O favoritismo do primeiro era enorme. O Industrial e o Bandeirantes, amadores, dominaram o futebol local na longa inatividade do Aymorés e, na volta deste, ficaram alguns patamares abaixo.

Foi no campo do Aymorés, cheio, festivo. O Tempero, de quem já falei aqui, jogando então no Industrial, fez um golaço – o único da vitória inesperada –, depois de driblar dois zagueiros e tocar de leve sobre o goleiro, e ganhou todos os prêmios de melhor em campo, aplausos, entrevistas, uma glória!

Quase trinta anos depois (dez anos atrás), no meu reencontro com o Tempero – modesto, já envelhecido, dirigindo um boteco humilde –, perguntei sobre esse jogo.

Ele, sempre muito calmo e de poucas palavras, descreveu o lance quadro a quadro, lentamente. Depois olhou um pouco de lado, na diagonal, para o alto, como se a teia da memória pendesse daquele ponto no teto e ele a fisgasse momentaneamente, em silêncio. E disse, o sorriso muito leve sob os lábios – falando, na verdade, para si mesmo:

– Que tarde! Que tarde!

E abaixou os olhos.

3. Minueto

Não sei se o Roque estava nesse jogo.

Sei que, com quase total certeza, ele e o Tempero nunca jogaram juntos.

Mas deveriam.

E, se o fizessem, eu queria tê-los visto.

Certamente haveria até hoje na minha lembrança grandes atuações da dupla.

E eu então diria para mim mesmo, com o olhar e o sorriso içados pela teia no teto:

– Que tardes! Que tardes!
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora Iluminuras

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/