Um vespertino de Ubá
POR LUIZ GUILHERME PIVA
1. Allegro
Depois de muitos anos inativo, o Aymorés, principal time de Ubá, voltou no início dos anos oitenta. Empresários e torcida mobilizaram recursos e apoios, reformaram o estádio e trouxeram alguns jogadores de fora, semiprofissionalizados.
E, de fato, montou-se um time forte, que entusiasmava. Entre os quatro ou cinco importados, todos de bom nível, destacava-se o Roque. Cercado de lendas, de sagas: estudante de engenharia em Ouro Preto, jogara no América ou no Cruzeiro, mas parara por conta do joelho, diziam. Não dava para o profissional, mas para o amador, uma vez por semana, era mais do que suficiente.
Não treinava. Chegava para os jogos e depois deles partia.
Centroavante, técnico, rápido, habilidoso e inteligente, tornou-se artilheiro e ídolo, com atuações históricas, nos relatos que me chegavam (eu já não morava na cidade). Craque, muito acima de todos.
Assisti-o somente uma vez: fiquei nos degraus atrás do gol, vendo-o de frente para a zaga e o goleiro adversários. Não era exagero. Lembrou-me o Careca, do Guarani, do São Paulo e do Napoli.
Com ele o Aymorés voltou a ser um grande time na região, ganhou títulos e encheu de alegria as tardes de domingo dos seus torcedores.
Roque brilhou por alguns – poucos – anos. E, tal como os heróis misteriosos, se foi com o futuro em brumas, desconhecido.
2. Adagio
Nessa época houve um jogo, pelo campeonato regional, do Aymorés contra o Industrial. O favoritismo do primeiro era enorme. O Industrial e o Bandeirantes, amadores, dominaram o futebol local na longa inatividade do Aymorés e, na volta deste, ficaram alguns patamares abaixo.
Foi no campo do Aymorés, cheio, festivo. O Tempero, de quem já falei aqui, jogando então no Industrial, fez um golaço – o único da vitória inesperada –, depois de driblar dois zagueiros e tocar de leve sobre o goleiro, e ganhou todos os prêmios de melhor em campo, aplausos, entrevistas, uma glória!
Quase trinta anos depois (dez anos atrás), no meu reencontro com o Tempero – modesto, já envelhecido, dirigindo um boteco humilde –, perguntei sobre esse jogo.
Ele, sempre muito calmo e de poucas palavras, descreveu o lance quadro a quadro, lentamente. Depois olhou um pouco de lado, na diagonal, para o alto, como se a teia da memória pendesse daquele ponto no teto e ele a fisgasse momentaneamente, em silêncio. E disse, o sorriso muito leve sob os lábios – falando, na verdade, para si mesmo:
– Que tarde! Que tarde!
E abaixou os olhos.
3. Minueto
Não sei se o Roque estava nesse jogo.
Sei que, com quase total certeza, ele e o Tempero nunca jogaram juntos.
Mas deveriam.
E, se o fizessem, eu queria tê-los visto.
Certamente haveria até hoje na minha lembrança grandes atuações da dupla.
E eu então diria para mim mesmo, com o olhar e o sorriso içados pela teia no teto:
– Que tardes! Que tardes!
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora Iluminuras
Sobre o Autor
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