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Blog do Juca Kfouri

A torcida única nos estádios (e na vida).

Juca Kfouri

19/04/2022 21h05

POR LEANDRO FREIRE

Eu sou muito a favor da torcida única nos estádios de São Paulo, e por uma razão muito simples: desde sua instituição, nunca mais vimos cenas de barbárie no relvado e nas arquibancadas como aquelas do dia 20 de agosto de 1995, na decisão da Supercopa de Futebol Júnior, entre Palmeiras e São Paulo. Aliás, penso que o Flamengo, que agora fere com ferro quem com ferro o feriu, proibindo a torcida do Palmeiras de acompanhar sua equipe no Maracanã na próxima rodada do Brasileirão, presta um serviço inestimável ao futebol brasileiro, ao importar para o Rio de Janeiro solução tão engenhosa já bem instaurada em São Paulo há muito anos.   

Há, porém, um problema com a torcida única na forma como ela se dá hoje em São Paulo: ela se limita apenas aos estádios e seus arredores. Por isso mesmo, as brigas, antes aí centralizadas, agora se espalharam por toda a cidade (assim como os 'ratos' da Cracolândia – paulistanos entenderão a analogia). Um exemplo disso são as inúmeras brigas e desavenças cada vez mais frequentes nos metrôs e estações de ônibus toda vez em que jogam dois grandes times da cidade. Ora, a solução para tal conflito me parece evidente: instauremos a torcida única no transporte público! Seria assim: em dias de clássico, quando o mando for do Palmeiras, apenas palmeirenses terão o direito de utilizar o transporte público na cidade, quando for do Corinthians, apenas corintianos, e assim por diante. 

Aliás, outro dia li a notícia de um rapaz que foi brutalmente espancado na periferia da cidade por um grupo de torcedores rivais porque ele usava a camisa do outro time na sua volta do trabalho, em um dia de dérbi. É mais do que óbvio que isto só ocorreu porque não foi instaurada nas periferias da cidade o regime da torcida única, no qual apenas torcedores do time mandante teriam o direito de circular nas ruas, comprar seu pãozinho de manhã, ir para o trabalho ou para a escola, o que – vejam só – ainda melhoraria bastante o trânsito da cidade, que anda terrível por estes dias! Melhor ainda seria instaurar a torcida única na circulação em toda a cidade, assim você teria a certeza de que, ali, todas as pessoas do seu convívio torceriam para o seu time, o que te permitiria, por exemplo, agendar cirurgias para aquele dia, afinal de contas, você não vai confiar sua vida em um médico que torce para o time inimigo, certo?

De modo a evitar que torcedores desavisados circulassem por aí com suas camisas, causando confusão, melhor seria instaurarmos a torcida única também nos bairros, tornando-os exclusivos para torcedores de um determinado time. Zona leste, apenas para corintianos, zona sul, apenas para são paulinos, zona oeste, apenas para palmeirenses, e pronto. A zona norte ficaria para as torcidas minoritárias – como a da Portuguesa, por exemplo – embora alguns argumentem que o melhor seria eliminar as minorias para facilitar as coisas, mandando-as de volta para Portugal ou para qualquer outro lugar de onde vieram (ainda estão deliberando sobre o que fazer com a torcida do Nacional).

O problema maior ficaria em saber quem torce para quem, embora mesmo para isto a solução me pareça muito simples: já no nascimento, seria implantado um chip no bebê com o seu time de coração, definido pelo pai da criança (afinal, futebol é coisa de homem), com um código numérico facilmente lido por um aplicativo de smartphone. Para facilitar a identificação, o mesmo código numérico seria tatuado no antebraço da criança, bem visível a todos. Além disso, seria necessário criar toda uma rede de vigilância e espionagem nos berçários e nas escolas, caso alguma criança se radicalize e decida virar a casaca já nos primeiros anos de vida, sem falar, é claro, em um tribunal específico, com punições severas e exemplares para tais subversões da ordem. 

No fundo, no fundo, o melhor mesmo seria estabelecer o princípio da torcida única em todas as esferas da vida, da concepção à morte. As possibilidades são infinitas! Desde estudos para identificar os genes associados a torcer por cada time, o que permitiria melhorar a raça e garantir linhagens mais puras, até a criação de uma cosmogonia para cada séquito de torcedores (Seria Adão corintiano? O céu palmeirense, seria ele verde? São Paulo, um santo ou um deus?), com seus cantos e oferendas de adoração. 

Deixo aqui esta ideia tão clara quanto maravilhosa, como minha pequena contribuição ao debate. Em nome dos deuses do (túmulo do) futebol, estou mais do que certo de que a paz (dos cemitérios) reinaria em sociedade tão perfeita.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/