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Blog do Juca Kfouri

SAF – Realidade, Ilusão e Perspectivas

Juca Kfouri

23/02/2022 00h34

POR RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO

Desde o advento da Lei 14.193/21 ("Lei da SAF"), de autoria do Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), produziram-se diversos textos e ensaios (e muitos palpites) sobre a pertinência ou a impertinência da proposição legislativa e do conteúdo final da lei (relatada pelo Senador da República Carlos Portinho – PL/RJ).

A verdade é que, compostos de argumentos positivos ou negativos, todos eles reafirmaram, consciente ou inconscientemente, um fenômeno incontornável: a potencialidade do novo mercado do futebol.

Temia-se (ou se criava um falso dogma de) que o ingresso de investidor, qualquer que fosse a sua procedência ou característica – mas em especial o estrangeiro –, ignorasse a relação sentimental estabelecida entre torcedores e times, e reduzisse a prática esportiva a uma atividade capitalista, norteada apenas pelo lucro.

Um dos mais recorrentes exemplos da suposta incompatibilidade entre capital e futebol consistia na falaciosa ideia de que, às vésperas de uma final de campeonato (ou de uma etapa relevante de um torneio), o investidor não hesitaria em orientar (ou obrigar) a empresa a negociar o craque do time para fazer dinheiro – em detrimento do resultado esportivo. Essa ilustração se repete, aliás, ainda hoje, em programas de rádio e de televisão – assim como nas arquibancadas e em conversas de bar.

A falsidade da proposição, alimentada pelos "donos do futebol" (cartolas que se aproveitavam dos frágeis modelos de governação de clubes para imposição de estruturas de poder e dominação), é evidente: aquela situação se verifica, e com alguma frequência, em clubes insolventes ou em crise – geralmente sediados em países que renunciaram à abertura do modelo associativo, tornando-se dependentes da exportação de pé-de-obra.

Foi nisso, num exportador de riqueza em estado bruto, que o País se tornou.

E foi para reformular esse secular estado de coisas que se concebeu, no Congresso Nacional, a Lei da SAF. Ela, porém, não deve ser vista como uma solução mágica para problemas, rasos ou profundos, dos times locais; trata-se, em essência, de um instrumento transformacional, que servirá aos propósitos organizativos e reorganizacionais de agentes que, até então, não se enxergavam (ou se relacionavam): clubes e investidores (e outros agentes, como financiadores de operações estruturadas).

Apesar dessas características, a miopia, como se indicou acima, ressurgiu, após o surgimento da Lei da SAF, inicialmente sob a forma de ceticismo e de criticismo, expressivo do desejo (implícito ou explícito) do insucesso.

Talvez a tendência tenha começado a se inverter com a notícia de que o investimento no Cruzeiro não seria liderado por um capitalista sem rosto, mas por Ronaldo, um ídolo mundial (e que carrega em seu currículo a propriedade de um time espanhol, o Real Valladolid); além de ex-atleta formado no próprio Cruzeiro.

Ali se percebeu, ao que tudo indica, que, ao contrário da fracassada modelagem do clube-empresa, instituída pela Lei Zico, em 1993 (e reformulada pela Lei Pelé, em 1998), a proposição do Senador Rodrigo Pacheco poderia seguir o rumo da aderência sistêmica.

Sim, pois ao contrário das tentativas pretéritas, a Lei da SAF não se fundava em um mero comando formal de transformação de uma associação em empresa, mas na concepção de um sistema apto a receber e a acomodar necessidades e interesses de quem investe e, na mesma escala, de quem viabiliza o investimento (o clube) e de quem é investido (a SAF, constituída pelo clube).

Aquela percepção se aguçou com mais uma novidade: o surgimento de outro investidor com rosto, John Textor – igualmente envolvido em negócios esportivos, como o Crystal Palace, na Inglaterra –, no projeto de reorganização do Botafogo.

Além desses dois casos midiáticos, e de uma dezena de outros em gestação, espalhados pelo País, nesta última semana de fevereiro o Vasco da Gama também anunciou o encaminhamento de uma negociação que envolve cifra bilionária, para ingresso de um fundo investidor de origem norte-americana; este, porém, sem rosto, mas que também ostenta envolvimento com times europeus.

Esses eventos indicam que as premissas edificadoras da Lei da SAF estavam corretas: (i) o associativismo se mantinha por conta da ausência de um arcabouço jurídico qualificado à atração de capitais para desenvolvimento da empresa do futebol; (ii) o Brasil atrairia interesse local e internacional e se tornaria um efetivo mercado emergente (e pujante); (iii) o excesso de liquidez anteciparia alocações de recursos no futebol, mediante aplicação em SAF concebida no âmbito de projeto sustentável; e (iv) bastaria o projeto de um clube relevante e substancial para influenciar os demais – que, se ficarem para trás, correrão o risco de se apequenarem ou se tornarem irrelevantes, do ponto de vista de resultados.

Ficar para trás não significa que clubes devam constituir a SAF, sem um projeto que lhe sustente. A constituição se justifica, a princípio, se, e apenas se, envolvida em uma proposta maior, de que participe ou não um investidor, mas, em qualquer caso, que tenha um objetivo material (e não puramente formal).

Aí surgem oportunidades que não deveriam ser ignoradas pelos clubes locais, que passaram a conceber, aparentemente, um novo (e equivocado) dogma: a necessidade de o investidor ter raízes no exterior e participar de times europeus.

Não há – e não haverá –, no ambiente do novo mercado do futebol, verdades absolutas; cada caso deve ser construído levando em conta as características do próprio clube e do seu time, bem como do que eles precisam e do que pretendem (ou podem) exigir e realizar.

Daí, para que se evite a ilusão (ou armadilha) de que apenas estrangeiros funcionam, e ainda de que não haverá solução viável fora de estruturas integrantes do futebol – e, assim, criar-se uma nova dependência, não do cartolismo, mas do "futebolismo" –, a Lei da SAF se apresenta como uma espécie de "lego", que viabiliza estruturações jurídicas de modo a acomodar os interesses das partes envolvidas, mesmo que não sejam, no caso de investidores, originários do esporte.

O tempo será útil para que a Lei da SAF (ou Lei Rodrigo Pacheco) seja testada em toda sua extensão. Enquanto isso, os clubes que perceberem, agora, a sua utilidade, deverão, além de acertar o rumo de seus caminhos, protagonizar, ao que tudo indica, o futebol nos próximos anos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/