Falso nove
POR LUIZ GUILHERME PIVA
– Cossís, Ridecúti e Púscas! – era assim que ele falava, para se referir ao "trio mágico magiar" – expressão dele.
Referia-se aos craques Sándor Kocsis, Nándor Hidegkuti e Ferenc Puskás, da Seleção da Hungria na Copa do Mundo de 1954. Tinha ouvido tudo pelo rádio quando vivia na cidade e ficara encantado com as maravilhas descritas pelos locutores e comentaristas.
Nunca se conformou com a derrota para a Alemanha na final.
Falava isso no boteco, no fim do mundo. Só roça e boi e enxada e uns campinhos em que a molecada corria no meio de adultos de botas e chapéus.
Contava as goleadas, o massacre na Inglaterra no desafio em Wembley antes da Copa, a briga com a Seleção Brasileira em Berna – e culpava os conterrâneos, para desentendimento dos ouvintes, que nem sequer imaginavam do que se tratava tudo aquilo.
Ninguém ali nascera antes de 1960. Nem a Copa de 70 viram pela TV: eram só chiados no rádio, com os ondulados do Waldir Amaral e os pontiagudos do Jorge Curi.
Isso há uns vinte anos. Todo mundo ali com quarenta e poucos no máximo, ele com quase setenta, ou mais. Gordo, camisas de manga suadas, calças largas, enxugava a calva com o lenço, virava a cerveja.
Tinha morado no Rio, em São Paulo, sem muito estudo, mas conhecera gente importante, viajara, sabia umas palavras de outras línguas, talvez tenha sido garçom, camareiro, motorista, ninguém sabia como fora parar ali.
Comprara um casa um pouco melhor, mais afastada, não plantava nada, não criava nada, tinha um dinheiro que buscava de fusca na cidade mais próxima e aos domingos sentava-se ali no boteco pra ver os jogos que chegavam, trêmulos, opacos, intermitentes, pela parabólica.
Descrevia as partidas na TV falando de táticas, esquemas, estratégias, posicionamentos. Ele é quem pagava a cerveja e o tira-gosto, então ouviam sem queixas nem perguntas.
Até que o narrador fez uso da expressão que o transtornou: "falso nove".
– O quê? Que diabo é isso? Falso nove?
O narrador e o comentarista, como se o ouvissem, explicaram o recuo do centroavante para "buscar jogo" e dar "assistência" (ele ficou louco: "Passe, meu filho, é passe que se fala!") aos companheiros de ataque.
Começou a xingar. Ninguém sabia de nada, não tinham ideia do que estavam falando, como podiam cometer uma heresia dessas?
– "Falso nove" era o Ridecúti! Ele é quem inventou isso na Hungria! Craque! Camisa 9, recuava e enchia o Púscas e o Cossís de gols!
Parava, suado, enxugando a cabeça.
– Ridecúti, entenderam? Que história é essa de um perna de pau qualquer ser "falso nove"? E tem mais: ponta de lança! Esse é o nome certo, entenderam?
Silêncio. Ele foi até a porta, ficou olhando para fora. Bufava de nervoso. O sol explodia a paisagem. Virou-se, já meio vermelho:
– Fora ele, só o Tostão, em 70. Mais ninguém, entenderam? Mais ninguém!
Pagou a conta, saiu, entrou no fusca e pegou a estrada. A umidade aumentou com o crepúsculo, o mormaço.
Estavam todos indo embora quando viram o fusca descendo a estradinha, se aproximando.
Parou, abriu a porta, pôs só o pé esquerdo no estribo, ficou em pé e falou alto:
– E o Chico Buarque! Só os três! Ridecúti, Tostão e Chico Buarque!
Entrou, bateu a porta, virou o carro e saiu fazendo barulho e poeira.
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora Iluminuras
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