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Blog do Juca Kfouri

Os padecimentos do jovem Adílio

Juca Kfouri

15/09/2021 12h00

POR PABLO CARDOSO*

O Adílio terá nascido aí por 1979, mais tardar maio de 1980. Não, não falo aqui do Adílio de Oliveira Gonçalves, camisa oito do maior Flamengo de todos. Trata-se dum homônimo, e de homonímia deliberada. Conforme ele próprio me explicou, o seu nome foi mesmo uma homenagem ao «neguinho esperto» por quem brilhavam os olhos do João Saldanha.

O problema é que nasceu em Belo Horizonte, e de família furiosamente atleticana. Mas o pai, que gostava do bom futebol, era doido pelo futebol do Adílio. E daí o nome.

—Só que aí começaram aquelas roubalheira para o Flamengo…

Quem o diz é o próprio Adílio, o homônimo. Foi numa tarde de carnaval em Belo Horizonte, e depois dumas cachaças ele estava à vontade para compartilhar o drama singular que o afligiu desde a mais tenra infância. Ao referir «aquelas roubalheira», ele falava, claro, da versão canônica que corre na serra do Curral e adjacências sobre os triunfos rubr0-negros de 1980 e 1981, justamente sobre o Atlético.

E aí percebi a vida difícil que teve o nosso Adílio. Nascendo onde nasceu, estaria sujeito a imensa pressão para ser atleticano. E terá dado os primeiros passos absorvendo como verdade bíblica o seguinte: com o Reinaldo —o maior centroavante de todos, até surgir o gordo Ronaldo—, o Cerezo, o Luisinho, mais o Éder, o Galo era o melhor time do mundo. Mas calhou de coincidir, no tempo e no espaço, com o Flamengo que tinha no Zico o maior jogador brasileiro depois do Pelé, mais o Júnior, o Leandro, o Tita, o Andrade. E o Adílio.

E, sempre que batiam de frente, ganhava o Flamengo, que era melhor. Mas o amor-próprio atleticano não o podia admitir, e inventou explicações sinistras para o fenômeno. Era tudo culpa do «eixo», termo que em Beagá designa, não o pacto nazifascista de 1936, mas uma igualmente malévola conspiração de cariocas e paulistas, supostamente irmanados no desígnio funesto de impedir a ascensão futebolística de mineiros, gaúchos, baianos e paranaenses. Ou culpa do José Roberto Wright, que teve o desplante de dar cartão vermelho para jogador que dá carrinho por trás, onde já se viu?

Isso tudo, está claro, lhe inculcaram desde pequenininho. Mas o Adílio devia ter algum fascínio pelo seu nome sonoro e o que ele evocava: um Rio de Janeiro ainda mítico a gozar a sua última década de Cidade Maravilhosa; o mar, o «marzão besta» dos idílios bissextos, numa época de viagens muito mais caras e mais difíceis; talvez, anos mais tarde, quando o nosso Adílio entrasse na adolescência, a putaria dos desfiles transmitidos pela TV Manchete… mas acima de tudo o Flamengo, aqueles estetas de vermelho e preto que jogaram o melhor futebol do mundo na primeira metade dos anos 1980, e a sua torcida magnética.

E o Adílio, assim fisgado pelo nome, cresceu com a alma partida entre os dois pólos. Por fidelidade de sangue e de terra, era atleticano. Como atleticano terá curtido toda uma década de hegemonia puramente local em cima daquela gente sem-sal do Cruzeiro. Como adepto du Galu, seguramente se convenceu de que os dois títulos da Copa Conmebol, já na década seguinte, foram mesmo algo de glorioso e de transcendente.

Mas havia o nome a puxar-lhe as cordas do coração para o Rio, para o mar, para o Flamengo. E, pela quarta ou quinta cachaça, o Adílio contou-me que aquele time marrento e espaçoso se lhe impunha, feito uma tara ou obsessão inconfessável, pela infância e adolescência adentro.

Pois deve ter sido muito duro crescer em Belo Horizonte carregando o nome de Adílio. Este terá sido o único comentário que fiz enquanto ouvia aquela história, fascinado pelo drama humano que me relatava o sujeito até ali desconhecido, amigo dumas primas muito queridas. E, ouvindo, imaginava: sabe Deus o que esse sujeito sentiu em 1987, quando o Renato Gaúcho disparou feito um cavalo de raça para enterrar a bola na rede do João Leite, pôr o Flamengo no rumo do Tetra e confirmar uma freguesia ancestral. E sabe-se lá de que expedientes esse cara lançou mão, ao longo dos anos, para esconder aquele amor recôndito da família e dos amigos — isso num ambiente onde o amor pelu Galu só é superado pelo ódio ao Flamengo.

—Mas aí veio aquele campeonato de 2009…

É o Adílio quem retoma o relato. Falava do Campeonato Brasileiro de 2009. O Flamengo, lembrou, terminou o primeiro turno na zona de rebaixamento. Era um time de bandidos e encrenqueiros, talvez a cara da torcida, com o Bruno no gol —aquele Bruno do sítio em Esmeraldas—, o gringo Pet a exalar marra ali no meio e «foda-se o pênalti», o Zé Roberto Cachaça numa ponta e o Adriano Imperador no comando do ataque. O Adriano aparentemente mais preocupado em organizar surubas onde havia de um tudo, consta que até burros e anões, do que em justificar o investimento de risco construído pelo Kléber Leite.

Mas deu-se que, no segundo turno, o time resolveu engrenar. Foi após uma derrota escandalosa para o Avaí, quando se diz que havia até neguinho bêbado em campo. Fora os bêbados, meia dúzia de juvenis escalados às pressas para suprir a ausência dos titulares e reservas machucados, indispostos ou francamente inservíveis. Diz a lenda que foi ali, na Ressacada, que o técnico Andrade, boleiro que era, entendeu bem que espécie de elenco tinha nas mãos. E chegou com eles a um trato: se precisassem de um dia a mais para recuperar-se da putaria e demais excessos do domingo à noite e da segunda livre, que o tivessem; mas queria-os treinando a sério a partir da quarta-feira.

E o time deslanchou. Com o Bruno fechando o arco e desandando a pegar pênalti; com Léo Moura e Juan jogando quase à altura, pela última temporada, dos predecessores imortais Leandro e Júnior; com o recém-chegado Álvaro a formar uma zaga indevassável com o verdadeiro Ronaldo, o Ronaldo da Nação, o Angelim do agreste; com os perebas de rigor em qualquer 4-4-2 ali na cabeça de área; com Petkovic, número 43 às costas, jogando um futebol de Zico e de Maradona; e com um Adriano imparável a ostentar, pela última vez na vida, uma forma física de George Foreman com Usain Bolt — pois esse Flamengo jogou mais bola, num intervalo exíguo de três meses, do que todos os campeões nacionais desde o Robertão, ressalvadas cinco ou seis exceções de praxe.

O nosso Adílio assistia àquilo fascinado. Talvez intuísse, como qualquer rubro-negro de berço, que o estavam deixando chegar, e deixou chegar… O cruzeirense ao meu lado anui gravemente e admite que aquele time, naqueles três meses, jogou um futebol extraterrestre. Mas o Adílio não lhe presta atenção e segue adiante.

Chega novembro e esse Flamengo ascendente ia enfrentar-se, num duelo que todos sabíamos decisivo, com o favorito de todos os analistas. E quem mais senão o Atlético, justamente o Atlético, o time da terra, do pai e da metade do coração do Adílio? Ninguém ali jamais o admitiu, mas é intuitivo que toda Belo Horizonte antecipasse o que ia acontecer. E o Adílio, agonizante, sabia que chegara à encruzilhada impostergável de sua terrena existência.

No dia 8 de novembro de 2009, o nosso Adílio dirigiu-se ao Mineirão. Comprou a sua entrada e, tomando coragem, quem sabe até murmurando um salmo ou um slogan desses de fabricante de material esportivo que nos instam a partir pra dentro, caralho, o Adílio parou diante do portão. E do portão dirigiu-se ao lado esquerdo das tribunas — ou sabe-se lá de que lado se posta, no Mineirão, a maior torcida da Terra.

Ali espremido e intimidado por um oceano de atleticanos à volta, mas irmanado com rubro-negros de nascença ou de opção vindos do Rio, de Juiz de Fora, de Barbacena, Itajubá, São Paulo e Manaus e até de Belo Horizonte, o nosso Adílio viu o gringo divino enfiar no ângulo atleticano o gol olímpico mais deslumbrante jamais testemunhado pelo velho estádio Magalhães Pinto. Viu o chileno Maldonado atordoar o goleirinho uruguaio du Galu para abrir os 2 x 0. Sofreu como todos nós ao constatar o quanto era intragável o tal do Ricardinho, com aquela mancha branca ridícula na cabeça, quando este foi lá e ameaçou melar a festa. Mas comemorou em êxtase quando o Adriano, num toque sutilíssimo que fez até lembrar o Reinaldo, chegou antes do goleiro para decretar os 3 x 1. Fora o baile, e rumo ao Hexa.

Naquele fim de tarde belo-horizontino, o Adílio chorou e cantou como cada um de nós. Digo «cantou» e já nem sei se o repertório incluía as insossas musiquinhas de hoje, feitas para a televisão, que falam de amor numa sintaxe castelhana. Quero crer que, por uma vez na vida, ele teve o prazer supremo de cantar, em território hostil, que «quem manda nesta porra é a torcida do Urubu». Fato é que, fosse em que repertório fosse, saiu dali com a certeza mística de que todos nós, ele também, teríamos um desgosto profundo se faltasse o Flamengo no mundo.

O Adílio tomou a última cachaça, que afinal era carnaval e a mulher lhe exigia atenções maritais, e fez uma única ressalva: —Mas teve aquelas roubalheira…

Se falava com convicção ou por um hábito antigo e já cristalizado, isso eu nunca soube. Vai ver era a seqüela duma esquizofrenia que carregou por tempo demais. Vai ver era o tributo que a identidade verdadeira, por tantos anos suprimida, condescendeu em pagar à memória do pai. O Adílio não esclareceu, nem me deixou perguntar. Pôs o copo sobre a mesa e partiu em melhor companhia.

Fosse como fosse, do relato angustiado, uma coisa ficou claríssima: foi naquela tarde de primavera de 2009 que, pela primeira vez na vida, o Adílio teve a certeza de quem era: mineiro com a graça de Deus, belo-horizontino sim senhor, engenheiro de profissão, rubro-negro de coração.

*Pablo Cardoso é diplomata de carreira.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/