É a união dos clubes, estúpido!

POR VICENTE PITHON*
Algo muito básico e primário, até óbvio, é a constatação de que a razão de existir do nosso futebol, como força social que movimenta bilhões em recursos e milhões em torcedores, são os clubes. São as chamadas entidades de prática esportiva, ainda em sua grande maioria de raízes e constituição associativa, que fomentam o jogo, formam seus atletas, estabelecem suas identidades regionais e culturais e, sobretudo, criam laços de fidelidade e sentimento com uma legião de seguidores, mais ou menos devotados.
São, portanto, em suas agremiações mais populares e tradicionais, pessoas jurídicas de imenso poder e influência, que emprestam equivalente prestígio e fama a seus dirigentes e ídolos, dentro e fora do campo. Certamente o Presidente do Flamengo, no Rio de Janeiro, só perde nesses quesitos para o Governador e Prefeito da capital. E olhe lá.
Pois bem, esses mesmos grandes clubes de futebol, cuja visão de longo prazo costuma ser embaçada pela miopia institucional de associações voltadas apenas para seus interesses e sua dinâmica política interna, raramente perceberam e, sobretudo, praticaram coletivamente esse exercício de poder no comando do nosso futebol. Nessas raras ocasiões, fizeram prova desse domínio.
A primeira delas foi em 1987, com o primeiro esboço de liga e o sucesso comercial trazido pela inovadora (em escala mundial) Copa União. A segunda é (foi?) mais recente, no primeiro semestre deste ano, que redundou em grandes e importantes avanços em nossa agenda de reformas do futebol brasileiro.
Erigida nos estertores de uma controversa medida política, a MP 984, mas cujo objeto carregava consigo um antigo anseio dos clubes, acabou por (re)germinar uma semente de coletividade que, ao fim, deu liga. Literalmente. O anúncio da formação de uma futura liga de clubes, acompanhado da exigência de maiores representatividade e participação nos desígnios da CBF, retomando sua paridade no colégio eleitoral, foi quase como uma carta de alforria, uma abolição da escravatura feita pelos próprios acossados.
Houve ainda, e não coincidentemente, além da aprovação da Lei do Mandante, a chegada ao mundo da Sociedade Anônima do Futebol, com suas novas possibilidades de financiamento e geração de receitas, mecanismos de transparência e governança e equilíbrio fiscal. Ao passo em que a própria Confederação vive grande crise interna, o movimento dos clubes parecia criar a tempestade perfeita para solapar as velhas e carcomidas estruturas de nosso futebol, refundando-o em bases mais modernas e promissoras.
Porém, ao contrário do que apregoa o velho ditado, após a tempestade (ainda) não veio a bonança. As forças do atraso demonstram agora reação e resiliência.
Enquanto a união do clubes é colocada à prova com atitudes como a do Flamengo em relação à volta do público aos estádios, o projeto da liga parece claudicar em meio à troca de farpas e acusações entre dirigentes. Na agenda legislativa, a lei das SAFs aprovada pelo Parlamento teve seus principais e mais importantes pontos vetados pelo Presidente da República. Dúvidas agora paíram sobre o destino da Lei do Mandante. Na CBF, dirigentes banidos ainda parecem dar as cartas, e jogam contra a agenda positiva.
Não há, portanto, caminho modernizante para o nosso futebol que não passe pela consciência coletiva da força de nossos clubes. Pela emancipação e autogestão de suas principais competições. Pela afirmação de sua força motriz como fundadora e mantenedora do esporte. Ou como diria de maneira mais direta e rude James Carville, o famoso assessor do Presidente Bill Clinton na campanha de 1992, é a união dos clubes, estúpido!
*Vicente Pithon é Consultor Legislativo do Senado Federal.
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/