O dia em que torcedores do Boca invadiram uma livraria em São Paulo
POR MAURO VENTURA

Era véspera da final da Copa Libertadores, Corinthians versus Boca Juniors.
Fredy Zapelloni estava, como de hábito, atendendo em seu Sebo Corsarium, na Galeria Le Village, na Rua Augusta, em São Paulo. O dia seguia calmo até que, por volta das 16h, um grupo de cerca de dez torcedores argentinos invadiu a galeria, numa corrida desenfreada, levando pânico aos frequentadores.
- Eram enormes, uns armários, que nem o Obelix. Pareciam barra brava – lembra Fredy, referindo-se aos torcedores mais violentos da Argentina.
Ele achou que era uma briga de torcidas e se assustou ainda mais quando percebeu que o grupo ia justamente em direção à sua loja.
- Havia uma tensão no ar naquela véspera de jogo. O clima estava pesado – diz ele, que antecipou cenas de violência e chegou a imaginar que pudessem vandalizar o estabelecimento.
Eles entraram no sebo e, para surpresa de Fredy, começaram a olhar as estantes de livros.
- Vocês querem livros em espanhol? – perguntou ele.
Eles riram da cara do dono do sebo. Um deles respondeu, com bom-humor:
- Livro em espanhol tem muito em Buenos Aires.
Eles queriam mesmo literatura brasileira. Mas não estavam atrás dos clássicos, como Guimarães Rosa. Buscavam escritores contemporâneos, que fossem de leitura mais fácil para quem não é fluente em português.
Cada um deles selecionou dois livros, entre autores como João Ubaldo Ribeiro, Verissimo e vários outros nomes. De meu pai, Zuenir, levaram "Inveja – Mal secreto". Exibiam os exemplares com orgulho, uns para os outros. Fizeram até fila para pagar.
Fredy ficou ainda mais espantado com tamanho interesse por causa da origem dos clientes. Eram todos da periferia de Buenos Aires, trabalhadores braçais, pedreiros, carregadores de móveis, porteiros. Um deles, o que parecia o líder, apontou para a capa de uma das obras e falou uma frase que o dono do sebo não esquece:
- Amanhã, acho que vamos perder o jogo. Mas o importante são os livros. Vamos ler, aprender um idioma. Sairemos todos com conhecimento.
Ele ainda fez graça:
- E se nos xingarem saberemos o que estão falando.
De fato, o Corinthians venceu por 2 a 0 no Pacaembu e levou a taça pela primeira vez. Já faz tempo que isso aconteceu – a final foi em 2012 -, mas só agora soube desse caso, por meio de Moa Assumpção, que esteve no sebo há pouco tempo e conversou com Fredy. Ao ler a história no Facebook de Moa, seguindo sugestão de minha amiga Maria Hirszman, liguei para o dono da loja e conversamos longamente. Fredy me diz:
- Os torcedores na verdade entraram correndo dentro da galeria porque estavam disputando para ver quem chegava primeiro ao sebo.
Ele começou o negócio há 20 anos, só com livros. Lá pelo ano de 2016, passou a vender também vinis. Resultado: os vinis passaram a fazer sucesso, o interesse pelos livros caiu, e agora ele está focando nos discos.
- Estou sendo forçado a mudar de ramo, pela queda na venda de livros e pelo aumento na procura de vinis, em especial de rock e MPB – observa Fredy.
Ele lamenta que o Brasil esteja caminhando na contramão desse interesse dos argentinos pela leitura.
– Os torcedores que vieram aqui eram todos do povão e estavam ansiosos para adquirir cultura.
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Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/