O pedaço final da taça

POR INÊS BARI
Ele colava perfeita e milimétricamente todas as figurinhas. Coisa que eu nunca conseguia. Até que eu começava bem os meus álbuns, na infância, mas bastavam duas ou três semanas, eu já entortava alguma para a esquerda. Outras avançavam a linha de cima. Ou sangravam para um dos lados. Ficavam bem tortas algumas figuras. Uma estética estranha e desenquadrada. Talvez futurista ou desmilitarizada, mas que faria estremecer qualquer ser com leve toc.
Meu irmão, não. Ele tinha o dom. Fazia a coisa perfeita e tinha técnica e habilidade no meio. Passava o pincel com a medida exata de goma arábica nos quatro cantos por detrás da figura de papel brilhante. Calculava com o olhar, indo e vindo, se aproximando e voltando, até fixar sem medo do lado esquerdo. Depois com o dorso da mão ia esticando a figurinha, para ficar lisinha no álbum limpinho e sem muito manuseio. Uma perfeição. E eu sempre com as minhas pelotinhas no meio das figurinhas.
Às vezes, eu mesma achava muito feio e tentava tirar e colar novamente. Doce ilusão. O normal era eu resgar um pedacinho. Colava o remendozinho, criando um monstrinho, o que para o Silvinho era imperdoável. E assim passei anos vendo meu irmão preencher seus álbuns na infância. Geralmente de futebol ou torneios. Ele preenchia sempre por inteiro. Não era pra qualquer criança, aquele zelo… Até na hora de abrir o pacotinho tinha ritual. Rasgava a parte de cima, um centímetro mais ou menos, na horizontal. Colocava as figurinhas sobrepostas e justinhas, uma atrás da outra. Depois ia puxando lentamente a detrás, criando pra si mesmo um suspense tremendo. Subia lentamente a última delas, desvendando o segredo. – Tenho! Tenho! Não tenho!
No final do álbum, ia ficando cada vez mais tenso. Vários pacotinhos de repetidas. Ele separava e colocava num montinho ao lado, amarrando com um elástico. Havia dois montinhos. O das mais fáceis e o das cobiçadas, prateadas, que muitas vezes, por duas ou três figurinhas, eram trocadas. No álbum mais antigo que eu me recordo, faltava só uma para completar a figura que tomava conta de toda a primeira página. O pedaço final da taça. Ele demorou semanas para achar. Trocou com um desconhecido. Não deu pra negociar. Pagou com cinco figurinhas e sua bolinha de gude vermelha. Valia a pena.
Voltou pra casa e colocou a figurinha na página, desta vez, sem colar. Ficou assim por mais de um mês. E eu com a ansiedade de ver o álbum terminar, compreendi sem perguntar… Se terminasse o álbum, qual o sentido divertido de ainda barganhar? Não contou pra ninguém. Fingia que faltava sempre uma. E continuava trocando com gosto, agora mais generoso. Até que num domingo, dia da final do jogo, colou com cuidado a figurinha que faltava. Milimétrica e perfeitamente. Na minha frente. Album completado. Folheado e fechado . Era o pedaço final da taça Jules Rimet. Fomos para frente da Tevê. Brasil 4 a 1 na Itália! Nessa, meu irmão contribuiu.
E eu que colei o Jairzinho, no lugar do Tostão? Ainda bem que ele não viu.
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Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/