Quando andar na linha não é bom negócio!

POR ROBERTO SALIM*
E o curioso é que a infração cometida foi igual. Tanto a de Derick Silva como de Ana Carolina Azevedo ocorreram na passagem do bastão, quando pisaram na linha e queimaram a raia de dentro
Claudinei Quirino segurou o choro.
Desfez o nó da garganta e fez o comentário que lhe cabia na transmissão do Campeonato Mundial de Atletismo, na Polônia.
Comentaristas de TV precisam manter a linha.
E os atletas não podem pisar na linha.
Se fosse nos seus tempos de atleta veloz, talvez Claudinei chorasse. E muito. Ele foi um dos mais importantes velocistas da história do esporte nacional e sabe muito bem o que é perder uma medalha por desclassificação: por uma pisada na risca de sua raia.
E havia uma expectativa muito grande por boas atuações dos revezamentos 4x100m feminino e masculino no torneio mundial.
"Eu gosto do esporte, vivo do esporte, vivo mesmo e me coloquei no lugar dos meninos e das meninas do revezamento 4×100 metros, quase chorei, mas aí iriam falar que eu era um desses velhos bunda mole, né? Mas fiquei chateado por eles, fiquei muito triste, porque fizeram uma corrida limpa, fizeram uma corrida bonita, chegaram em segundo lugar, mas juntinho ali com os sul-africanos. E infelizmente infringiram a regra, não é? E a regra é igual para todo mundo. Mas eu pensei nos anos de treinamento e fiquei muito triste, porque tudo foi embora por um detalhe, anos de trabalho de aperfeiçoamento. Foi como se a chuva levasse a casinha numa enxurrada e a gente ali sem poder fazer nada. Foi isso que senti na hora. E sou metido a forte e não chorei na transmissão. Mas queria sim chorar!"

Claudinei Quirino, na prova do revezamento 4×100, normalmente era quem fechava a competição pela forte equipe brasileira. Ou mantinha o lugar conquistado pelos três companheiros ou era o responsável por buscar um lugar no pódio com passadas firmes e fôlego de campeão. E invariavelmente conseguia. Era um atleta de raça, força e técnica inimagináveis.
Emotivo, Claudinei sentiu tristeza também pelas meninas.
Elas tinham vencido as eliminatórias, mas foram desclassificadas pelo mesmo motivo: outra pisada na raia. E o curioso é que a infração cometida foi igual. Tanto a de Derick Silva como de Ana Carolina Azevedo ocorreram na passagem do bastão, quando pisaram na linha e queimaram a raia de dentro.
Aqui sua análise completa.
"Primeiro: existem algumas regras no revezamento. O Brasil fez uma passagem limpa, rápida, porém pisou, e vou falar, literalmente pisou na bola. Não pode pisar na linha, na raia, nem do lado de fora nem do lado de dentro. Porque o pessoal entende que você leva algum tipo de vantagem."
"Segundo: o treinador nosso sempre nos ensina que você não pode pisar na linha, você tem de pegar o bastão dentro da área de recebimento, da raia de passagem (hoje mudou muita coisa, mas a regra continua sendo a mesma). E outra coisa: se você deixa o bastão cair, quem deixou o bastão cair é que tem que pegar. Por exemplo, neste mundial aí uma atleta iria passar o bastão, ele caiu no chão e outro atleta pegou. A equipe está desclassificada, porque quem deixou o bastão cair é que tem que pegar."
"Uma lição que eu vejo para todos os atletas. Existem dias ruins. Você pode estar treinado, saber de tudo, mas naquele dia não deu nada certo. E isso não quer dizer que todo aquele treinamento, todo aquele trabalho, todo aquele suor foi tudo em vão. Não aconteceu simplesmente. Então, levanta a cabeça e vai em frente. Vamos recomeçar tudo de novo e prestar atenção, porque existe uma coisa muito séria no revezamento. Todo mundo te ensina a passagem do bastão, que a velocidade é muito importante, que é importante passar o bastão na zona de passagem, mas uma coisa todo mundo esquece de falar, que é a parte técnica, que é você pisar na linha, infringir alguma coisa. E o revezamento hoje é o big brother. Antigamente, nós tínhamos os árbitros, os olhos deles, mas hoje nós temos as câmeras. Nós somos vigiados passo a passo, milimetricamente."
NELSINHO E A FORÇA CENTRÍPETA

Outro velocista histórico do Brasil, o professor Nelsinho Rocha dos Santos sentiu duplamente o que aconteceu nas pistas da Polônia. Primeiro, porque também se viu nas passadas dos meninos. Depois porque imaginou sua filha Evelyn na prova feminina – filha que em anos passados fez parte da fortíssima equipe nacional.
"Olha, eu estive conversando com amigos, que me perguntaram sobre o que aconteceu no Mundial. E fui dizendo que tudo é na origem. E na origem da espera. O segundo homem, ele tem de correr muito próximo da linha ex-ter-na", ensina Nelsinho.
"E por que você tem de correr próximo da linha externa? Porque o terceiro homem que vai receber o bastão na curva, ele tem de ficar afastado um pouco da linha. Por quê? Porque ele está olhando para trás, né? Vendo onde o segundo homem vai pisar na marca treinada para quando ele se deslocar à frente em alta velocidade, e quando ele se desloca existe um pequeno desequilíbrio. E se ele estiver muito próximo da linha naqueles primeiros metros após começar a se deslocar à frente, a força centrípeta que age violentamente puxa ele para dentro. E aí vem o desequilíbrio", explica Nelsinho, com o conhecimento adquirido em mais de 20 anos de pista e uma coleção de medalhas e participações olímpicas e em Mundiais.
"Então, o que aconselho é treinar, explicando essa situação para que ele – o terceiro homem – fique um pouquinho mais afastado da linha para não ocorrer o que ocorreu. Então acredito que tenha sido lá na origem, na hora da espera, eles estavam muito próximos da linha da curva. E aí a força o puxou para dentro. Um pequeno desequilíbrio. O menino então pisou só uma vez. Uma vez e pronto. Se ele estivesse um pouquinho mais afastado, para fora, tranquilo… Por isso que o segundo homem tem que vir bem para fora mesmo. Lógico que também sem pisar na linha externa, porque não pode invadir a linha. Ele tem de vir beirando… a linha externa. O segundo homem, tá?"
"Vocês podem ver que isso dificilmente acontece com o primeiro homem, que também corre na curva. Por quê? Porque o primeiro homem não tem esse problema de estar olhando para trás e ter que virar bruscamente para sair a toda velocidade. Ele sai do bloco. Equilibrado. Eu acredito que seja isso: na origem, lá na hora em que ele está esperando. Ele estava esperando muito próximo da linha, e a força centrípeta o jogou para dentro. Mas correram muito bem, são dois revezamentos muito promissores."
"As meninas também são fortes. E acredito que os dois revezamentos têm plenas condições de ir às finais, mesmo com a Grã-Bretanha vindo, os Estados Unidos, Jamaica, Trinidad e Tobago. Eu acredito que tenham plenas condições de chegar às finais olímpicas."
Se Nelsinho falou…
Está falado.
Agora é corrigir os erros em treinamentos e derrubar a tal força centrípeta em Tóquio.
Talvez até chorar um pouquinho junto com Claudinei Quirino.
Desabafar.
Nossos jovens e valorosos velocistas e nossas mulheres velozes devem ter aprendido que em uma pista de atletismo nem sempre andar na linha é bom negócio.
*Publicado originalmente em ULTRAJANO.
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/