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Blog do Juca Kfouri

Cio

Juca Kfouri

09/05/2021 20h08

POR LUIZ GUILHERME PIVA

Os maridos, companheiros, sumiam por um tempo. Boias-frias, peregrinos, sempre em êxodo, depois de tempos e estações fora voltavam, reviam a elas e aos filhos, faziam outros, outra estação, outra colheita, outra diáspora, novos incertos retornos, e elas no eito dos donos das terras, além da comida, das bacias, dos varais e daquelas ninhadas de crianças.

Meninos e meninas se misturando, se multiplicando, quase virando uma grande massa ou um só corpo, em meio aos mosquitos e carrapatos, os pés sujos, os olho sujos, tantos, tão densos que pareciam não existir.

Aos domingos as mães sentavam-se no barranquinho e os punham no pequeno terreno de capim ralo e terra e formigueiros correndo atrás de bolas; uma de plástico velho, outra de meias enroladas, outra uma cabeça de boneca, outra uma sacola com areia.

E então é que se embolavam ainda mais. Mas em movimentos, em correntes, como águas de meninas e meninos desenhando marés – só que, nesse momento, ganhando individualidades, virando cada um, cada qual, cada si. É nessa hora que as mães, com meros relances, conseguiam distinguir suas crias, seus frutos, suas colheitas, e apontavam para um, para aquela, para este, para outra, para duas, para o maiorzinho, a de cachos, o que chutou de esquerda, aquela que fez o gol, e os viam tão nitidamente que conseguiam – só nessa hora, em nenhum outro momento dos dias e estações – captar traços da face, jeitos de andar, tipos de cabelo, as marcas de cada pai, suas próprias características em cada filho, cada filha.

E a elas mesmas. Olhavam-se, lado a lado, encantadas, vendo-se ao ver as demais tão claramente, tão distinguidas que afirmavam suas próprias almas, histórias e traços físicos.

Bastava olhar as ninhadas – e agora, no campinho, cada cria era um futuro, não só um pingo seco do presente – e, ao divisá-los em suas particularidades chutando e correndo, a fome de bola, de meia, de cabeça de boneca, de sacola, para cada uma delas então sentir que incorporava suas existências, que devia haver algum sentido em alguma coisa – como se elas mesmas estivessem no campo e os filhos, nas suas barrigas, e suas barrigas, prenhas de horizontes, e os maridos e parceiros também pudessem colher com elas o que aquele futebol ou cio gerava de certezas e ilusões.

Mas aí ficava escuro. Ficava quente. Úmido. Bichos grudentos e zumbidos deitavam de novo sobre tudo o espesso pano que apagava delas e das crianças o que brevemente conseguiam experimentar. Tudo novamente era curto, pesado, cego.

As bolas sumiam.

Os homens às vezes voltavam; às vezes, não.

Os filhos às vezes iam embora; às vezes, não.

Nem se pode dizer que aqueles e estes às vezes morriam.

Porque estavam todos, aqueles homens, aquelas mulheres e aquelas crianças, todos mortos.

Exceto naquela hora, naquele campinho, com aquelas bolas.

Sentiam que era assim. Mas não sabiam.

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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora Iluminuras

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/