Cio
POR LUIZ GUILHERME PIVA
Os maridos, companheiros, sumiam por um tempo. Boias-frias, peregrinos, sempre em êxodo, depois de tempos e estações fora voltavam, reviam a elas e aos filhos, faziam outros, outra estação, outra colheita, outra diáspora, novos incertos retornos, e elas no eito dos donos das terras, além da comida, das bacias, dos varais e daquelas ninhadas de crianças.
Meninos e meninas se misturando, se multiplicando, quase virando uma grande massa ou um só corpo, em meio aos mosquitos e carrapatos, os pés sujos, os olho sujos, tantos, tão densos que pareciam não existir.
Aos domingos as mães sentavam-se no barranquinho e os punham no pequeno terreno de capim ralo e terra e formigueiros correndo atrás de bolas; uma de plástico velho, outra de meias enroladas, outra uma cabeça de boneca, outra uma sacola com areia.
E então é que se embolavam ainda mais. Mas em movimentos, em correntes, como águas de meninas e meninos desenhando marés – só que, nesse momento, ganhando individualidades, virando cada um, cada qual, cada si. É nessa hora que as mães, com meros relances, conseguiam distinguir suas crias, seus frutos, suas colheitas, e apontavam para um, para aquela, para este, para outra, para duas, para o maiorzinho, a de cachos, o que chutou de esquerda, aquela que fez o gol, e os viam tão nitidamente que conseguiam – só nessa hora, em nenhum outro momento dos dias e estações – captar traços da face, jeitos de andar, tipos de cabelo, as marcas de cada pai, suas próprias características em cada filho, cada filha.
E a elas mesmas. Olhavam-se, lado a lado, encantadas, vendo-se ao ver as demais tão claramente, tão distinguidas que afirmavam suas próprias almas, histórias e traços físicos.
Bastava olhar as ninhadas – e agora, no campinho, cada cria era um futuro, não só um pingo seco do presente – e, ao divisá-los em suas particularidades chutando e correndo, a fome de bola, de meia, de cabeça de boneca, de sacola, para cada uma delas então sentir que incorporava suas existências, que devia haver algum sentido em alguma coisa – como se elas mesmas estivessem no campo e os filhos, nas suas barrigas, e suas barrigas, prenhas de horizontes, e os maridos e parceiros também pudessem colher com elas o que aquele futebol ou cio gerava de certezas e ilusões.
Mas aí ficava escuro. Ficava quente. Úmido. Bichos grudentos e zumbidos deitavam de novo sobre tudo o espesso pano que apagava delas e das crianças o que brevemente conseguiam experimentar. Tudo novamente era curto, pesado, cego.
As bolas sumiam.
Os homens às vezes voltavam; às vezes, não.
Os filhos às vezes iam embora; às vezes, não.
Nem se pode dizer que aqueles e estes às vezes morriam.
Porque estavam todos, aqueles homens, aquelas mulheres e aquelas crianças, todos mortos.
Exceto naquela hora, naquele campinho, com aquelas bolas.
Sentiam que era assim. Mas não sabiam.
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora Iluminuras
Sobre o Autor
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