Nãos
POR LUIZ GUILHERME PIVA
"E ela, então, não riu. Vocês, os que não a ouviram não rir, nem suportam de lembrar direito do delirido daquela risada."
(Guimarães Rosa. "Benfazeja", em Primeiras Estórias)
É o que eu não tenho dele na memória inventada. Andando em "C", a nuca sideral, os olhos sapatos. Mas jamais o vi. Ele nasceu e morreu muito depois de eu ter existido.
Ele terá jogado em todos os campos inexistentes deste lugar. Terá sido o maior goleador de quantos jogos não ocorreram. As jogadas mais fantásticas que ninguém, nem ele, jamais fez.
E eu não vi tudo, tudinho.
Saberei, com nada, contudo, que sua glória gigantesca, que o mundo todo se encarregará de preservar, nunca terá sido nem sequer conhecida.
Que dele sempre só lembrarão – e farão questão de incessantemente não falar, em muda babel – de um lance perdido, uma falha imensa, da qual ele não participou (era um momento de sua vida em que ele não mais ou ainda não jogava) e da que só não tomou conhecimento assim que o time, derrotado, o encurralou, em silêncio, e o culpou – primeiro pelo fato de ele não estar ali; segundo, pelo passe que ele não deu, ou pela bola que ele não perdeu, ou pelo gol que ele não desperdiçou; enfim, pela sua inexistência em um lance em que ele fora tão decisivo.
Mesmo antes e depois disso, quando todas as vitórias e proezas que ele não acumulou em tantos jogos não havidos terão já se espalhado – ou melhor: terão sido ocultadas se, que e quando, subjuntivamente, não houvessem não sido vistas –, e mesmo durante, haverá sido eternamente desesquecida por absolutamente ninguém aquela passagem que o curvava nas ruas, já velho de uma história inteiramente alheia, tão sua que lhe faltará como algo a uma lâmina.
A gravidade nos olhos. A espinha cometa.
Talvez fosse um não gol, não fosse um gol, nem fosse um fosse.
A ausência como a bigorna na perna, a corrida pântana.
Talvez não fosse um jogo, nem talvez.
Ele mesmo nunca terá então vindo a saber o que não era aquele lance.
Mas é o que lhe faltará: a falta daquele lance, cujo último momento terá sido a bola distante luzes de seus pés.
É isso.
Não, não é isso.
Não sei, com certeza.
É que é disso que me esqueço todos os dias. Por mais que eu me esforce, não consigo tirar tal esquecimento das minhas retinas.
Mas é o que nele será o mais pesado.
O meu ou o dele delírio.
A dele ou a minha dor.
O incerto é que teremos de seguir assim, sem esse jogo, essa bola, esse lance, esse gol que ele não terá feito, nem eu nem terei visto nem podido ao menos inventar.
Para todo o nunca.
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora Iluminuras
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/