Clareira
POR LUIZ GUILHERME PIVA
Ali era só mato. Eles ficavam em bando, com facões, foices e tesourões, cortando o capim e os bambus, abrindo terreno, caminhos, clareiras, mas era tudo denso e escuro também de árvores e moitas altas, arbustos, espinheiros, galhos de coqueiro e palmeiras caídos.
Eles nem atinavam como chegavam ali. O caminhão os pegava no galpão de manhã e devolvia à noite. Nem se quisessem saberiam como sair de lá. Um guia os conduzia mato adentro com uma corda, que ele depois recolhia. Para sair, a mesma coisa.
Além da marmita de angu, comiam das plantas, mas não havia nada além de umas frutinhas mirradas e cujo nome nem conheciam.
Exceto pelos cocos.
No chão, no alto das árvores, caindo sozinhos ou por sacudidas, eram a salvação para a sede e para a fome. E, em meio à indignidade, eram o que lhes dava prazer.
O talho do facão, a água entornada na boca, no pescoço, no peito, a casca rasgada, a polpa – era de se fechar os olhos e, por alguns minutos, morrer ou nascer de novo: de uma forma ou outra, imaginavam que talvez assim pudessem ser mais felizes.
Não se sabe quando, mas houve um dia em que um deles resolveu tirar toda a casca verde e as fibras e deu com a esfera marrom revestida com alguns pelos. Chacoalhou, jogou para o alto, rolou nas mãos e percebeu que todos o olhavam.
Atrás deles, um descampado. À frente, aos lados, mato. No alto, o meio-dia.
Voltaram, jogaram o coco no chão, largaram as ferramentas e, de botas, descalços, de chapéus ou sem, com ou sem camisa, as calças rotas, começaram a chutá-lo, e a correr, todos com todos contra todos para todos em lugar de todos, para todos os lados, indo e voltando e chutando e gritando e sorrindo e formando ondas, e caíam, levantavam-se, em volta tudo mato espesso, capim, arbusto, árvore, espinho, bambu e escuridão.
Só viam e sentiam que estavam ali, naquele clarão aparado, liso, iluminado, exaurindo-se, jogando, e abrindo outros cocos para beber sua água e comer sua polpa, e abrindo outros só para fazer novas bolas, e nem se lembravam das marmitas, das frutinhas, do capataz, do galpão, do caminhão, da corda que os trazia e tirava, de nada.
E não precisavam de fechar os olhos.
Tinham certeza de que haviam morrido ou de que estavam nascendo de novo.
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora Iluminuras
Sobre o Autor
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