O octa do Tio Carlos
POR JORGE MURTINHO*
POR JORGE MURTINHO*
Como costuma acontecer com boa parte dos torcedores no mundo inteiro, a consanguinidade fez de Carol Mantuano uma apaixonada por futebol – e mais especificamente, pelo Flamengo.
Entretanto, os genes não foram herdados diretamente do pai, exemplo raro de rubro-negro não xiita. O responsável pela paixão foi a querida figura de seu Tio Carlos, ele sim, flamenguista de ir aos céus nas vitórias mais arrebatadoras e de cair prostradonaquelas derrotas de entristecer.
Tio Carlos foi quem tomou as mãos da ainda menina Carol para conduzi-la, pelaprimeira vez, ao Maracanã. O que aquele pequeno coração sentiu foi o mesmo que se passou com muitos de nós, de qualquer idade, ao entrarmos pela primeira vez no estádio-templo para ver um jogo do Flamengo. Não há como esquecer. (No meu caso, aconteceu há quase seis décadas e lembro de cada detalhe.)
Durante muitos anos, a cena se repetia nos eventos familiares promovidos na casa da avó de Carol: enquanto, espalhadas pela cozinha e demais cantos, as pessoas falavam de política, de música, de cinema, da vida alheia ou de subcelebridades, Tio Carlos e Carol sentavam-se no sofá da sala para discutir o que ia bem e o que precisava mudar no time, resolver o crônico problema da bola aérea defensiva, apontar soluções para o misterioso sumiço dos gols de falta.
A idade e o conforto das transmissões pela tevê afastaram Tio Carlos do estádio, mas ele e Carol permaneceram debatendo cada partida, via troca de mensagens no WhatsApp, como se estivessem instalados à esquerda das cabines de rádio.
Até que, no final do ano passado e por conta da Covid, Tio Carlos teve de ser hospitalizado. Ficou inconsciente. E num gesto do mais puro amor ao tio e ao clube, Carol continuou mandando mensagens a ele depois de cada jogo. Eram duas as esperanças: apesar das oscilações do time, Carol acreditava no título; apesar do estado grave do tio, Carol estava certa de que em breve ele conseguiria ver tudo o que ela lhe enviara.

Após os oito minutos de acréscimo no jogo entre Inter e Corinthians, veio o alívio.Zero a zero. Flamengo campeão brasileiro pela oitava vez. Flamengo mais vezes campeão brasileiro do que qualquer outro.
Já na madrugada de quinta para sexta, encharcada de emoção, Carol postou a seguinte mensagem para o tio: "Esse título é meu pra você. E obrigada por ter me apresentadoa esse mundo do futebol que eu tanto amo."
Poucas horas antes, Tio Carlos tinha voltado a se comunicar. E ainda há quem diga que o futebol se resume a 22 caras correndo atrás de uma bola.
*Jorge Murtinho escreve no blog República Paz & Amor. No início de 2020, ele e Nivinha Richa publicaram o livro "Festa na Favela", um registro do que foi a fantástica temporada do futebol do Flamengo em 2019.
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/