Cruzeirinho
POR LUIZ GUILHERME PIVA
Era só isso o que ele fazia, todos os dias.
Acordava cedo, bochechava, cuspia. O naco de rapadura, o café fraco, o cigarro de palha.
E subia o barranco.
Na marmita, arroz e farinha.
Ficava vendo as crianças lá embaixo jogando bola.
Ou o campinho vazio.
O dia todo.
Voltava tarde, mascando capim, a sola rachada. Nas paredes de pau a pique, retratos ovalados em sépia, esverdeados – não sabia de quem eram os rostos; já estavam lá quando chegou recém-casado.
Só o pôster do Cruzeirinho, colorizado, ele é que pôs. Moldura fina, vidro trincado, a camisa riscadinha, o fundo difuso, ele de goleiro, blusa preta, braços cruzados, a Glostora brilhando, o bigode fininho bordando o lábio.
Foi no domingo do retrato que a esposa o deixara. E levara os meninos.
Chegou do jogo campeão, mas viu em casa a derrota esvaziando tudo.
E assim ficou.
Sem jogar, sem trabalhar, conseguindo algum com umas capinas pros vizinhos.
E vendo as peladas dos meninos.
Muitas vezes pensou em pedir pra entrar no gol, mas desistiu.
Agora está muito velho, arqueado, a pele em lascas, erodida como o chão seco.
Solta o bafo de leve no vidro e o enxuga com o punho bem em cima da sua imagem.
Tantos anos já, tantas peladas, tantas crianças – será que dois deles, ou ao menos um, não eram os seus?
Apaga a vela.
Passa a mão no cabelo, como se o ajeitasse com brilhantina.
Só uns fiapos brancos.
Agora já estão grandes.
Mas talvez algum neto, pensa.
E dorme.
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora Iluminuras
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/