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Blog do Juca Kfouri

A volta da mala “branca”

Juca Kfouri

23/02/2021 14h19

POR MARCELO DAMATO

A polêmica sobre o suposto incentivo do empresário colorado para que os jogadores do São Paulo vençam o Flamengo na quinta-feira mostra outra vez o grau de hipocrisia -e de racismo- no debate sobre o futebol nacional.

De cara, impressiona que num país em que milionários chegam a torrar dezenas de milhões de reais com festas e com ou apoiando a charlatanice médica -que recebe também dinheiro público- o oferecimento de um incentivo por um bilionário desesperado para ver seu time superar uma seca de 40 anos vire motivo de tamanha polêmica.

A prática de terceiros oferecerem dinheiro para que equipes vençam em situações especiais é muito antiga no Brasil. Certamente tem mais de 60 anos. O futebol mudou muito, mas em certos casos parece que estamos presos no tempo -ou andando pra trás.

Décadas atrás, até poderia se dizer que uma bolada desse tamanho poderia impactar o desempenho de jogadores que ganhavam em média, em moeda atual, algumas dezenas de milhares de reais. Mas hoje, em que nenhum titular de time grande recebe menos de R$ 250 por mês, o que representam 1 milhão de reais para uma equipe inteira? Isso deve equivaler a uns três dias de salário dessa equipe, ou talvez apenas dois.

Nem mesmo como premiação isso seria uma exceção, pois hoje os contratos com patrocinadores e grandes fornecedores possuem cláusulas de desempenho, que sempre rendem enormes bônus por meta.

Há uma outra questão, que tem menos a ver com o esporte e mais com o racismo. A partir dos anos 90, a imprensa passou a usar a expressão "mala branca" para esse procedimento, para diferenciá-la da "mala preta", que seria um ato muito mais reprovável, ofertar dinheiro em troca de uma derrota.

Por que "branco" foi associado com o ato "polêmico" e o "preto", com o ato 100% reprovável? A causa é 100% o racismo estrutural.

Originalmente, emissários de clubes com interesse numa vitória alheia iam à equipe que queriam estimular e levavam dinheiro vivo . Muitas vezes as notas eram acomodadas numa mala -normalmente maletas para documentos, as tais 007. Essas pessoas eram os "homens da mala".

Como essas maletas costumavam ser pretas, surgiu a expressão "mala preta". Só havia essa expressão -e só era usada para esse fim -ninguém cogitava fazer o contrário.

Mala preta não tinha uma conotação muito negativa. Da mesma época é a expressão "grana preta" para se referir a muito dinheiro. Era uma expressão positiva. Assim, na "mala preta", havia uma "grana preta".

A segregação racial dos incentivos veio muito depois, provavelmente quando algum cartola acossado quis argumentar que seu ato não era tão reprovável. Tirou do bolso outra cor e deixou o "preto" para longe dele. Isso mostra que o racismo não pode ser creditado apenas a práticas antigas. Como muitos outros delitos, ele também se renova e moderniza.

Enfim, é preciso para de reagir no automático cada vez que esse assunto ressurge. É a única maneira de acabar de vez tanto com a hipocrisia quanto com as expressões racistas ligadas a ele.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/