A volta da mala “branca”
POR MARCELO DAMATO

A polêmica sobre o suposto incentivo do empresário colorado para que os jogadores do São Paulo vençam o Flamengo na quinta-feira mostra outra vez o grau de hipocrisia -e de racismo- no debate sobre o futebol nacional.
De cara, impressiona que num país em que milionários chegam a torrar dezenas de milhões de reais com festas e com ou apoiando a charlatanice médica -que recebe também dinheiro público- o oferecimento de um incentivo por um bilionário desesperado para ver seu time superar uma seca de 40 anos vire motivo de tamanha polêmica.
A prática de terceiros oferecerem dinheiro para que equipes vençam em situações especiais é muito antiga no Brasil. Certamente tem mais de 60 anos. O futebol mudou muito, mas em certos casos parece que estamos presos no tempo -ou andando pra trás.
Décadas atrás, até poderia se dizer que uma bolada desse tamanho poderia impactar o desempenho de jogadores que ganhavam em média, em moeda atual, algumas dezenas de milhares de reais. Mas hoje, em que nenhum titular de time grande recebe menos de R$ 250 por mês, o que representam 1 milhão de reais para uma equipe inteira? Isso deve equivaler a uns três dias de salário dessa equipe, ou talvez apenas dois.
Nem mesmo como premiação isso seria uma exceção, pois hoje os contratos com patrocinadores e grandes fornecedores possuem cláusulas de desempenho, que sempre rendem enormes bônus por meta.
Há uma outra questão, que tem menos a ver com o esporte e mais com o racismo. A partir dos anos 90, a imprensa passou a usar a expressão "mala branca" para esse procedimento, para diferenciá-la da "mala preta", que seria um ato muito mais reprovável, ofertar dinheiro em troca de uma derrota.
Por que "branco" foi associado com o ato "polêmico" e o "preto", com o ato 100% reprovável? A causa é 100% o racismo estrutural.
Originalmente, emissários de clubes com interesse numa vitória alheia iam à equipe que queriam estimular e levavam dinheiro vivo . Muitas vezes as notas eram acomodadas numa mala -normalmente maletas para documentos, as tais 007. Essas pessoas eram os "homens da mala".
Como essas maletas costumavam ser pretas, surgiu a expressão "mala preta". Só havia essa expressão -e só era usada para esse fim -ninguém cogitava fazer o contrário.
Mala preta não tinha uma conotação muito negativa. Da mesma época é a expressão "grana preta" para se referir a muito dinheiro. Era uma expressão positiva. Assim, na "mala preta", havia uma "grana preta".
A segregação racial dos incentivos veio muito depois, provavelmente quando algum cartola acossado quis argumentar que seu ato não era tão reprovável. Tirou do bolso outra cor e deixou o "preto" para longe dele. Isso mostra que o racismo não pode ser creditado apenas a práticas antigas. Como muitos outros delitos, ele também se renova e moderniza.
Enfim, é preciso para de reagir no automático cada vez que esse assunto ressurge. É a única maneira de acabar de vez tanto com a hipocrisia quanto com as expressões racistas ligadas a ele.
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