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Blog do Juca Kfouri

Viva!

Juca Kfouri

19/01/2021 17h10

POR LUIZ GUILHERME PIVA

Era um timinho, quer dizer, um juntado ali dos peões do bairro, quer dizer, vila, quer dizer, nem vila era, era um cantinho de ruas meio perdidas, com terra e mato, uns casebres, venda de pinga, armazém de troços, uma estradinha que dava pra fazenda, cachorros e bois magros, uma carroça e o galpão pros trabalhadores que ficavam indo e vindo pra colheita.

Mas um deles cismou que faria um time de verdade, de tanto jogarem no capim, as traves de bambu, de manhãzinha ou noitinha, a princípio de brincadeira, depois valendo cigarro, cachaça, pão doce, boné e, numa decisão mais dura, uma bola. Quem perdeu juntou os trocados e trouxe o prêmio embrulhado pros vencedores. Mas acabou que era de todos, porque era tudo misturado. Nem eles mesmos sabiam quando eram de um lado ou de outro. Às vezes até mudavam de lado no meio do jogo sem perceber, e chegavam a se ver no outro time, marcando a si próprio, de tão iguais na quase inexistência.

Foi a bola que acendeu a ideia. Com ela assim novinha, era preciso organizar. Ele juntou todos e explicou. No par ou ímpar dividiria titulares e reservas. Só que eles jogavam sem camisa, descalço, calções rasgados, uns até de cueca. E ele queria mais. Queria que o goleiro tivesse calção acolchoado e luvas de couro, que vestissem camisa de time, mas de gola tradicional, fazia questão, pra balançar no ombro e na orelha durante o pique, e sugeriu que o centroavante, de cabelo escorrido, usasse uma faixa na testa, mas nada disso havia por ali.

Faria uma rifa. Um cabrito que uma das esposas assaria pro vencedor. Calculou arrecadar mais do que o suficiente, e que a sobra daria pra comprar chuteiras e meiões, pôr traves de madeiras e redes de barbantes, nivelar o capim, posar pra fotos com uns em pé e outros agachados, fazer aquecimento, bate-bola, corridas em volta do campo, marcar jogos nas cercanias, voltar com troféu e faixa, brindar, gritar "viva!".

Mas não deu em nada. Ninguém procurou um cabrito disponível, e, se achassem, não havia pra quem vender a rifa, e, se vendessem, jamais o dinheiro daria pra tanto sonho e, se desse, não teriam horário nem lugar nem outros times pra haver disputas. A bem da verdade, ninguém nem prestou atenção quando ele começou a apresentar a ideia desde o início.

Ele ainda passou muito tempo imaginando tudo, e cada vez maior, sozinho, vendo as imagens de times em revistas puídas no balaio em que juntava as botas e os chinelos. Às vezes até falava "viva!" baixinho, um braço pro alto, com o copo ausente.

Mas tudo ficou mesmo o que era, o descampado, a rarefação, a quase inexistência, e mais nada.

Quer dizer, tinha a bola.
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/