Viva!
POR LUIZ GUILHERME PIVA
Era um timinho, quer dizer, um juntado ali dos peões do bairro, quer dizer, vila, quer dizer, nem vila era, era um cantinho de ruas meio perdidas, com terra e mato, uns casebres, venda de pinga, armazém de troços, uma estradinha que dava pra fazenda, cachorros e bois magros, uma carroça e o galpão pros trabalhadores que ficavam indo e vindo pra colheita.
Mas um deles cismou que faria um time de verdade, de tanto jogarem no capim, as traves de bambu, de manhãzinha ou noitinha, a princípio de brincadeira, depois valendo cigarro, cachaça, pão doce, boné e, numa decisão mais dura, uma bola. Quem perdeu juntou os trocados e trouxe o prêmio embrulhado pros vencedores. Mas acabou que era de todos, porque era tudo misturado. Nem eles mesmos sabiam quando eram de um lado ou de outro. Às vezes até mudavam de lado no meio do jogo sem perceber, e chegavam a se ver no outro time, marcando a si próprio, de tão iguais na quase inexistência.
Foi a bola que acendeu a ideia. Com ela assim novinha, era preciso organizar. Ele juntou todos e explicou. No par ou ímpar dividiria titulares e reservas. Só que eles jogavam sem camisa, descalço, calções rasgados, uns até de cueca. E ele queria mais. Queria que o goleiro tivesse calção acolchoado e luvas de couro, que vestissem camisa de time, mas de gola tradicional, fazia questão, pra balançar no ombro e na orelha durante o pique, e sugeriu que o centroavante, de cabelo escorrido, usasse uma faixa na testa, mas nada disso havia por ali.
Faria uma rifa. Um cabrito que uma das esposas assaria pro vencedor. Calculou arrecadar mais do que o suficiente, e que a sobra daria pra comprar chuteiras e meiões, pôr traves de madeiras e redes de barbantes, nivelar o capim, posar pra fotos com uns em pé e outros agachados, fazer aquecimento, bate-bola, corridas em volta do campo, marcar jogos nas cercanias, voltar com troféu e faixa, brindar, gritar "viva!".
Mas não deu em nada. Ninguém procurou um cabrito disponível, e, se achassem, não havia pra quem vender a rifa, e, se vendessem, jamais o dinheiro daria pra tanto sonho e, se desse, não teriam horário nem lugar nem outros times pra haver disputas. A bem da verdade, ninguém nem prestou atenção quando ele começou a apresentar a ideia desde o início.
Ele ainda passou muito tempo imaginando tudo, e cada vez maior, sozinho, vendo as imagens de times em revistas puídas no balaio em que juntava as botas e os chinelos. Às vezes até falava "viva!" baixinho, um braço pro alto, com o copo ausente.
Mas tudo ficou mesmo o que era, o descampado, a rarefação, a quase inexistência, e mais nada.
Quer dizer, tinha a bola.
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora
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