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Blog do Juca Kfouri

Este é Jorge Jesus, o homem tosco

Juca Kfouri

09/12/2020 15h02

Relembro aqui o melhor perfil que li sobre Jorge Jesus, antes de seu sucesso no Flamengo.

E relembro para dizer que não me surpreendeu sua impensada declaração sobre os acontecimentos de ontem no Parque dos Príncipes: "Está na moda isso de racismo".

Primeiramente porque ele nem sabia o que tinha acontecido, razão suficiente para calar.

Em segundo lugar porque de uma cabeça simplória não poderia mesmo ter saído coisa melhor.

Ele tem outras frases que causaram espécie: "O fair-play é uma treta. Time meu não faz". Ou ao comentar um pênalti marcado contra seu time: "O terceiro golo surge de um lance que está na moda. Os treinadores têm de passar a contratar jogadores manetas".

Os grifos em negritos são meus.

POR MATHIAS ALENCASTRO*

Um fadista no banco de reservas. Sempre vestido de preto dos pés à cabeça, uma homenagem à sua amada Mãe, Jorge Jesus costumava acompanhar o jogo sentado perto da linha lateral. A sua voz rouca de ex-fumante ecoava pelas arquibancadas dos estádios moribundos que frequentava.

No Belenenses

Durante muito anos, o hoje técnico do Flamengo era apenas um treinador iconoclasta acostumado a baldear entre times pequenos, entre eles o Belenenses, um clube de bairro escondido atrás do Mosteiro dos Jerónimos, onde repousa Luís de Camões, outro grande poeta português.

Com a sua crista prateada e o seu jeito de taxista da Baixa lisboeta, Jesus destoa no universo do cada vez mais formatado e regulamentado do futebol mundial. Avesso a redes sociais, estranho quando sai na capa das revistas dos famosos, Jesus é um dos últimos representantes do Portugal rude e arcaico das casas em ruínas, do vinho tinto pesado e das tascas gordurosas, abandonado por uma nova geração de consumidores de Airbnb, latte e poke bowls.

Ícone desse Portugal limpinho e cheiroso, globalizado e elitista, José Mourinho passou pelos melhores clubes do mundo até ser relegado ao papel ingrato de anti-herói de outra figura do futebol pós-moderno, Pep Guardiola. Metrossexual poliglota, frequentador das galas filantrópicas e sócio de empresas de offshore, Mourinho anunciou recentemente que estava aprendendo a sua sexta língua, o alemão, com se estivesse se preparando para vencer o Nobel de economia.

Enquanto isso, Jesus ainda luta para pronunciar corretamente "I love you". Se Mourinho é o herdeiro de Cesar Luis Menotti, o sofisticado argentino de terno bem cortado e palavreado refinado, Jesus é o sucessor dos apaixonantes e erráticos Zdenek Zeman e Marcelo Bielsa, pouco preocupados com a imagem pública e obsessivamente dedicados ao jogo.

A ascensão de Jesus, o proletário, começou tarde. Em 2010, ele era apenas mais uma vítima do capitalismo selvagem português. Nesse ano, ele declarou, atônito, na porta da sede do recém-falido Banco Privado Português, que tinha perdido todas as suas economias. A tragédia o levou para União de Leiria, Belenenses e Sporting de Braga, de onde foi promovido para técnico do mítico Benfica. Fez história conquistando mais títulos do que o lendário Otto Glória, mas nunca perdeu a fama de azarado.

Entre benfiquistas, ele continua sendo lembrado pelo famoso "minuto 92", quando se ajoelhou no Estádio do Dragão depois de um gol fatal no último jogo do campeonato e pela "tragédia de Turim" – a perda de uma taça europeia para o Sevilla, após um triunfo épico contra a poderosa Juventus nas semifinais. Mourinho é o vencedor mal-amado, enquanto Jesus é o derrotado adorado.

Agora tudo pode mudar. Nas próximas semanas, ele terá a oportunidade de provar que os grandes portugueses só realizam o seu destino quando desembarcam no Atlântico Sul. Chegou a hora de Jesus viver a sua Grande Noite.

Beijando Vitinho

*Mathias Alencastro é Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra)

**Texto publicado originalmente na "Folha de S.Paulo" em 24 de outubro de 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/