O sono da democracia produz monstros
POR MARCOS NOBRE*

Acostumando-se a viver com
fantasmas, por decisão deliberada
ou não, o campo democrático
prepara mais um pesadelo
autoritário para o país
Com a pandemia, uma janela para o afastamento de Bolsonaro se abriu no primeiro semestre de 2020.
Mas não foi ocupada. Por que não?
Muitas respostas estão disponíveis, muitas são as razões.
Mas talvez esteja faltando uma que é decisiva. Uma razão
que explique por que não existe oposição e por que não se
formou a frente ampla necessária para que o
impeachment pudesse avançar.
Acho que no primeiro semestre o debate público mainstream e o sistema político como um todo só confirmaram para si mesmos uma
convicção que os faz girar em falso desde a eleição de 2018: tanto quem forma opinião quanto os partidos continuam agindo como se o governo Bolsonaro fosse mera continuidade do governo Temer.
A prioridade de quem se coloca no campo da democracia
hoje não é derrotar o verdadeiro inimigo, que é Bolsonaro,
mas seu adversário histórico.
Um adversário que pertence a um passado que Bolsonaro já enterrou, aquele em que PT e PSDB representavam os dois polos organizadores da política.
O adversário de um mundo que já não existe mais.
De maneira interessada ou não, democratas se encontram
em estado de negação da realidade. A premissa da
continuidade entre os governos de Temer e de Bolsonaro é
irreal porque a magnitude da ameaça à democracia em
cada um dos casos é incomparável. Ao mesmo tempo, a
premissa é a mais real possível porque polariza de fato as
disputas entre os campos democráticos da direita e da
esquerda. As forças políticas que não partem dessa
premissa, que querem evitar a polarização nesses termos,
ficam sem lugar e sem espaço. O que acaba reforçando
ainda mais a própria polarização, que se torna
incontornável.
À direita, ataca-se no governo Bolsonaro tudo o que não é
governo Temer. E, para ficar com a consciência
democrática limpa, ataca-se também ministérios e órgãos
de aparelhamento explícito da extrema direita e a pessoa e
a atitude de Bolsonaro, como se fosse possível dissociar
Bolsonaro do governo que dirige. Em todo o resto,
continua-se a pensar e agir como se de governo Temer se
tratasse.
À esquerda, Bolsonaro é apenas o resultado lógico da ação
de uma direita golpista e, portanto, antidemocrática na
sua essência. Para ficar com consciência democrática
limpa, diz que o fascismo já se implantou no país desde o
governo Temer e que a esquerda é o único campo
verdadeiramente democrático ainda existente. Como a
direita democrática, também a esquerda democrática
continua a pensar e a agir como se de governo Temer se
tratasse.
Nessa lógica de polarização, a premissa de uma
continuidade entre Temer e Bolsonaro é entendida à
esquerda como continuidade do "golpismo" que teria
abatido a democracia já em 2016. À direita, entender o
governo Bolsonaro como continuidade do governo Temer
é entendê-lo como continuidade de um governo
"reformista" liderado pelo Congresso Nacional. É essa
concordância de fundo dos dois campos que permite a
Bolsonaro manter vivas as condições para implantar seu
projeto autoritário.
Tanto a esquerda como a direita democráticas se recusam
a chamar o campo adversário de "democrático", para
começar. Consideram mais importante continuar a
disputa de 2016 do que preservar a democracia. Porque,
no fundo, acham que conseguirão derrotar ou conter
Bolsonaro.
A direita democrática acha que conseguiu "conter"
Bolsonaro. E acredita que conseguiu e conseguirá segurá-lo
no projeto de destruir as instituições democráticas.
A esquerda democrática continua no mesmo estado de
desorientação em que se colocou desde a derrubada de
Dilma Rousseff. Simplesmente não consegue fazer
oposição. Espera que o fracasso, a seus olhos inevitável,
do governo Bolsonaro faça com que o poder lhe caia no
colo na eleição de 2022.
A inexistência de oposição e os obstáculos para a formação
da frente ampla para afastar Bolsonaro têm a mesma raiz.
E a raiz está na destruição mútua das forças políticas que
culminou na parlamentada que afastou Dilma Rousseff. É
o que elegeu Bolsonaro e o que o mantém no poder até
hoje.
E, no entanto, no momento da chegada da pandemia ao
país, Bolsonaro se viu ameaçado em grau máximo.
Enxergou a ameaça e tentou adiantar seu cronograma de
implantação do autoritarismo. Tentou dar um golpe
clássico. As condições ainda não estavam prontas, não
havia ainda um dispositivo paramilitar organizado, não
conseguiu convencer as Forças Armadas de que seria o
melhor caminho. E Fabrício Queiroz foi preso, com todas
as consequências que essa ameaça traz para o presidente e
para sua família.
Bolsonaro foi obrigado a fazer um recuo tático. Teve de se
ocupar de aparelhar mais pesadamente a Polícia Federal e
o Ministério Público. Teve de aceitar a saída que lhe foi
oferecida pelo "partido militar", que se impôs como força
organizadora do governo e realizou a negociação com o
centrão.
BOLSONARO INAUGUROU UMA ERA EM QUE
NÃO HÁ MAIS SITUAÇÃO E OPOSIÇÃO. MAS A
MAIOR PARTE DE NÓS CONTINUA
PENSANDO EM TERMOS DO MUNDO
POLÍTICO QUE DEIXOU DE EXISTIR,
ANTERIOR À ELEIÇÃO DE BOLSONARO
Passado o pânico inicial, Bolsonaro descobriu que se
apavorou à toa, descobriu que tinha sido desnecessário
mostrar todas as cartas que tinha na manga antes do
tempo. Voltou a seu projeto original de destruir a
democracia em duas etapas, sendo o primeiro mandato
apenas a preparação para a consolidação do autoritarismo
em um segundo mandato. Como escrevi em meu livro
"Ponto-final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia",
destruir "uma Constituição como a de 1988 e todo o lento
trabalho de criação e consolidação das instituições
democráticas leva tempo. O objetivo autoritário de
Bolsonaro nunca foi para 4 anos".
Mas o movimento atabalhoado e apressado de mostrar
todas as cartas desnecessariamente teve dois resultados
políticos imediatos de grande importância para o atual
presidente. O discurso de elogio à ditadura militar está
normalizado, tornou-se parte da paisagem. Não se vê
agora nem mesmo as famosas e inócuas "notas de
repúdio" de antes. Em seu discurso do 7 de setembro,
Bolsonaro defendeu a ditadura militar em nome da defesa
da democracia. Para ele, ditadura militar e democracia são
sinônimos.
Bolsonaro conseguiu também fidelizar os 15% de apoio
fanático que se dispõem a ir com ele até o fim,
seja lá como for, seja com Temer ou sem Temer, com ou
sem centrão, seja com Renda Brasil ou sem Renda Brasil.
Bolsonaro conseguiu essa fidelização não só porque
encenou a céu aberto seu projeto autoritário. Também
porque esses 15% não têm melhor opção do que
Bolsonaro. Nem pretendem ter, aliás. Pela primeira vez
desde a redemocratização, uma figura política conseguiu
catalisar e concentrar a preferência do eleitorado
autoritário, que andava disperso desde o fim da ditadura
militar.
Mas teve mais. Bolsonaro também colheu desse momento
outro resultado extremamente positivo para seu projeto
autoritário: o fato de a janela que se abriu não ter sido
ocupada mostrou que o atual presidente não tem
adversários, que não precisa ter pressa nem mesmo diante
de uma situação tão desfavorável quanto a da pandemia e
da recessão econômica que a acompanha. Bolsonaro
descobriu que não há alternativa a Bolsonaro.
Para o campo democrático, a lição a tirar da janela
desperdiçada do impeachment no primeiro semestre foi
que, sozinha, nenhuma candidatura ou força política
conseguirá derrotar o atual presidente. Só o campo
democrático organizado e unido pode derrotá-lo. E a
chance de isso acontecer é baixa porque todo mundo acha
que pode ganhar de Bolsonaro no mano a mano. E tudo o
que Bolsonaro quer é produzir um mano a mano desse
tipo.
Mais que isso, Bolsonaro entendeu que a manutenção da
divisão no campo democrático depende da manutenção da
crença de que seu governo é uma simples continuidade do
governo Temer. E o que fez? Chamou o próprio Temer
para seu governo! Passou a tratá-lo como conselheiro
informal, fez dele enviado oficial do país ao Líbano
devastado por uma trágica e altamente destrutiva
explosão. E depois Bolsonaro é que é o burro e o tosco.
Esse governo de recuo tático, com Temer e centrão,
reforçou no debate público e na disputa partidária a
divisão do campo democrático.
A vitória de Bolsonaro na eleição de 2018 e no teste da
pandemia mostra claramente que foi o próprio jogo que
mudou. Quem continuar jogando o jogo anterior, já
perdeu. Quem tiver como única proposta política voltar ao
jogo como foi jogado antes, já perdeu.
Só que é exatamente isso o que faz quem rejeita ou
simplesmente não quer que Bolsonaro se reeleja: continua
a achar que "o seu candidato" ou "a sua candidata", seja lá
quem for, derrotará o atual presidente em 2022 e
magicamente curará fraturas estruturais das instituições
democráticas do país. A grande maioria continua a fazer
cálculos eleitorais em uma situação em que as próprias
eleições correm o risco de já não significarem mais
democracia.
Pode ser que uma nova janela para o impeachment se abra
em 2021? Pode. É até bem provável que se abra, aliás. As
pesquisas indicam que Bolsonaro só conseguiu manter (e
mesmo aumentar em alguns pontos) sua base de apoio em
cerca de um terço do eleitorado por causa do auxílio
emergencial. E o auxílio emergencial terminará. Substituílo
por um programa de renda básica e investimentos em
obras não é tarefa evidente para um governo em
dificuldade fiscal que nunca governou de fato. Sem contar
as denúncias de corrupção que continuam surgindo contra
Bolsonaro e sua família, hoje a fragilidade mais visível de
seu governo de recuo tático.
E, no entanto, continua a não haver alternativa. Bolsonaro
inaugurou uma era em que não há mais situação e
oposição. Mas a maior parte de nós continua pensando em
termos do mundo político que deixou de existir, do mundo
político anterior à eleição de Bolsonaro.
A primeira versão da ilusão aconteceu sob o governo
Temer, lustrado como se fosse uma volta dos tucanos ao
poder. Ainda hoje, já sob Bolsonaro, economistas, por
exemplo, continuam brigando pela política econômica
como se o país ainda fosse governado por PT ou por
PSDB. Como se as disputas que travam em papers e
mídias sociais, de maneira não raro bruta e violenta,
pudesse de fato definir a política econômica. Como se a
política econômica ela mesma estivesse de fato em
disputa. E como se pudesse ser definida em tuítes e brigas
de jornal. É a ilusão máxima que Bolsonaro produz. Ilusão
de que ele se aproveita eleitoralmente, sem dúvida.
Uma discussão de fato informada pela ameaça real de um
governo autoritário começaria por uma conversa franca e
aberta entre os dois campos sobre a atual correlação de
forças na política brasileira. Seria já um começo
importante. O campo da esquerda democrática poderia
então reconhecer que a correlação de forças não lhe
permite ascender ao poder com o afastamento de
Bolsonaro. Que suas chances estão em 2022. Mas que
essas chances dependem de um governo que não seja o de
Bolsonaro.
Reconhecendo desde já que um processo bem-sucedido de
impeachment de Bolsonaro levará a um governo de
direita, a esquerda participaria da frente ampla para
afastar o atual presidente, mas não do governo que vier a
sucedê-lo. Com isso, a esquerda poderia negociar, dentro
da frente ampla democrática, condições para garantir que
poderá disputar de maneira justa as próximas eleições
gerais. Poderia negociar condições para poder voltar a
fazer oposição.
NÃO SE TRATA AQUI DE IGUALAR AÇÕES DA
DIREITA E DA ESQUERDA NESSE PROCESSO
DE DESTRUIÇÃO MÚTUA. OS GOLPES NÃO
FORAM PROPORCIONAIS, MUITO MENOS
JUSTOS EM TERMOS DEMOCRÁTICOS. SÓ
QUE ISSO AGORA É SECUNDÁRIO
Esquerda e direita democráticas têm de se entender sobre
a exigência de que o governo que vier a suceder o de
Bolsonaro no caso de seu afastamento seja um governo
que governe — o que Bolsonaro nunca fez —, que não seja
um governo populista. Ao exigir que o governo que virá
após o afastamento de Bolsonaro não seja um governo
autoritário, em nenhum sentido possível, restabelecerá
que é um governo que se pode apoiar e ao qual se pode
fazer oposição. O que hoje é impossível porque governo
não há — o que é exatamente a concepção de governo de
Bolsonaro que desnorteia os partidos e a divisão entre
situação e oposição.
O campo da direita democrática poderia reconhecer que a
correlação de forças lhe permite suceder o atual
presidente e afastar pelo menos a forma mais imediata da
ameaça que representa seu autoritarismo de extrema
direita. Mas não lhe permite aniquilar o adversário à
esquerda. Teria de reconhecer que mesmo com o
afastamento de Bolsonaro — o que não significa de
maneira alguma a derrota do projeto autoritário no país,
mas seria um passo decisivo nesse sentido —, nenhuma
força política, mesmo que em aliança com outras forças
políticas, conseguirá governar sem o reconhecimento de
uma oposição organizada.
Em suma, a esquerda e a direita democráticas precisam se
reorganizar como campos políticos. E, nessa reconstrução
de seus respectivos campos, precisariam se ajudar,
começando pelo reconhecimento do outro campo como
democraticamente legítimo. Conseguir governar
democraticamente exige que forças políticas de expressão
aceitem ser oposição dentro das regras democráticas.
Caberia aos dois campos democráticos reconhecer que
esse mínimo democrático foi inviabilizado pela destruição
mútua de anos recentes. Caberia reconhecer que essa
destruição só vai parar se zerarem o jogo da culpabilização
mútua.
Não se trata aqui, como se faz tão frequentemente, de
igualar ações da direita e da esquerda nesse processo de
destruição mútua de anos recentes. Os golpes não foram
proporcionais, muito menos justos em termos
democráticos. Só que isso agora é secundário. O
fundamental neste momento é reconhecer que toda a
destruição mútua realizada recentemente serviu e serve à
perpetuação de Bolsonaro e à efetivação de seu projeto
autoritário. E que essa constatação exige conceder
prioridade absoluta às ações que possam dar um basta a
esse processo de destruição mútua. Para que a institucionalidade democrática possa se estabilizar de
alguma maneira e permitir o enfrentamento efetivo da ameaça autoritária.
Foi isso o que a janela não aproveitada da pandemia para
o afastamento de Bolsonaro ensinou. Mas foi só Bolsonaro
quem aprendeu essa lição. O sistema político continua a
pensar e a agir como se a eleição de Bolsonaro ainda não
tivesse acontecido. Como se ainda estivéssemos em pleno
governo Temer. Acostumando-se a viver com fantasmas,
por decisão deliberada ou não, o campo democrático
prepara mais um pesadelo autoritário para o país.
*Marcos Nobre é professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e codiretor do
Mecila.
**Publicado originalmente no jornal Nexo.
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/