Parede nos retratos
POR LUIZ GUILHERME PIVA
Vai cortando as revistas Placar. Todos os ídolos, grandes jogadores, grandes lances. Prega as páginas (com o durex dobrado no verso) na parede do quarto.
Mas isto foi há, o quê, 45 anos?!
Adulto, grisalho, a caixa de revistas velhas, sozinho no quarto – dentro de casa há tanto tempo! –, está fazendo aquilo outra vez?
Acontecera de fato. E ficara olhando o mosaico sobre a cama dele e as dos irmãos: Pelé, Rivelino, Zico, Ademir da Guia, a Seleção Brasileira, estádios, torcidas, cabeçadas com o suor espirrando, meiões encharcados, troféus, a ponte do goleiro, uma geometria enorme, ele deitado no chão e olhando, talvez pensando que uns 45 anos depois estaria voltando de algum lugar ou de algum tempo para reencontrar a si mesmo ali deitado e conferir a antiga parede, as fotos e o quarto antes de partir.
Mas agora? Assim, quase velho, sentado no chão – a barriga! -, olhando o espelho – a barba por fazer -, aqueles recortes velhos de novo? De novo colando-os na parede?
Será que, ao inverso, ele, menino, é que entrará naquele instante e se verá maduro colando as páginas amareladas na parede – mas de outro quarto, acima de outra cama – e se flagrará sentado – os joelhos! –, estranhará a figura em que se tornou e reconhecerá mais os ídolos nas fotos do que a si mesmo?
Mas como? Não há revistas ali. A coleção ficou na casa da infância. Ali não há nada. Em volta só há paredes vazias. Mas nem mesmo as vê, são vazadas!
A mãe, naquele dia, entrara e o fizera arrancar tudo. Que ideia maluca! Parecia um muro de praça, a prateleira de um armazém, um pardieiro!
Por causa do durex as fotos se rasgaram em vários pontos. Ainda as empilhou, disformes, pensando que as guardaria para sempre. Mas qual! Elas puíram, desbotaram, sumiram.
O que, então, sem revistas, ele agora recorta e cola na parede? Que jogadores? Que fotos? Que lances?
Recortes da memória? Fotogramas de si mesmo no tempo? Polaroides tremidas do que foi (ou não foi?) vivido? Talvez. Mas, se forem, o que retratam? Fez gols? Defendeu? Cabeceou? Voltou molhado da área para o meio de campo, com a cabeça baixa? Ou com o braço erguido, o salto, a massa descendo a arquibancada em sua direção?
Não consegue ver.
E se entrar alguém (quem?) e arrancar tudo de novo? E com isso rasgar as fotos (que fotos?) e esfolar a parede – mas que parede?
Olha o menino à sua frente – de fato, ele veio. Fecha os olhos para que ele suma: preferia que ele, adulto, é quem o tivesse visitado como imaginara lá atrás, para não se ver daquele jeito.
Sabe que não haverá como tentar empilhar e guardar as fotos desta vez. Que terá que jogá-las fora direto.
Mas jogá-las onde?
Onde, meu Deus, onde?
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora Iluminuras
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/