As velhas de Siracusa e Taubaté
Por MARCELO TORRES*
Com cento e tantos dias sem futebol, sempre em casa, comendo até pão dormido de quatro dias, sento-me ao rés-do-chão, no carpete, com as costas apoiadas ao pé do sofá, e folheio o "Dicionário de Expressões Populares da Língua Portuguesa", de João Gomes da Silveira.
Abro de forma aleatória o livro na página 766 e leio lá uma expressão que até hoje nunca havia lido nem ouvido — "Ser como a velha de Siracusa", o que quer dizer "rezar pela vida de um tirano, pela continuidade de um governo autoritário, de um chefe despótico".
A expressão, segundo o livro, surgiu a partir de historieta sobre Dionísio, um monarca que governava a Siracusa, na Itália, de forma bastante despótica. Toda vez que ele passava por uma esquina, lá estava uma velha rezando: "Dai, ó Deus, vida longa ao governo deste homem".
O rei despótico, que se sabia odiado por todos, ou quase todos — porque sempre há alguma gente que gosta de tiramos — um dia parou e perguntou o motivo daqueles bons votos.
— Seu pai era um michel-temeroso — disse a velha. — Vossa Majestade veio pior que ele. Então peço a Deus longa vida ao reinado de Vossa Majestade.
— A senhora reza pelo meu reinado? Mas por quê?
— Porque tenho muito medo do que possa vir depois do senhor.
Depois de Dionísio e Siracusa, pulemos para o Brasil da década de setenta, quando o Palácio do Planalto e a Esplanada dos Ministérios eram extensões dos quartéis. Naqueles tempos, onde o partido da ditadura, a Arena, ia mal, botava-se mais time no Campeonato Nacional (que chegou a ser disputado por 94 clubes, em 1979).
E foi também naquele tempo que o craque Luís Fernando Verissimo criou uma curiosa personagem — a Velhinha de Taubaté.
Nas palavras do autor, "ela era a última pessoa no Brasil que ainda acreditava no governo". O general João Baptista de Figueiredo presidia o país [1979-1985]. A Velhinha apoiou até o fim os governos militares.
Depois acreditava na palavra de Sarney ("sou uma fiscal do Sarney"), Collor ("o presidente mais bonito que já houve"), Itamar ("meu topetudo"), até FHC ("um intelectual, um gentleman").
Quando, porém, chegou o governo do "sapo barbudo", segundo noticiado, ela veio a falecer, logo após o estouro da boiada do mensalão. No dia 25 de agosto de 2005, o próprio 'pai da criança' anunciaria, em crônica no Estadão, a morte da sua cria.
"Morreu na frente da televisão, talvez com o choque de alguma notícia", escreveu Verissimo. "A polícia mandou, para exame de laboratório, os restos do chá que a Velhinha estava tomando com bolinhos de polvilho", revelou ele, para logo em seguida concluir: "Pode ter sido suicídio".
Não, Verissimo, não foi suicídio. Aliás, meu craque, você fez uma barrigada, uma baita bola fora, porque a criaturinha nem chegou a morrer. Na verdade, a Velhinha saiu de cena nos governos Lula e Dilma, "esses diabos vermelhos". Entretanto, a criatura voltaria à cena com o Temer, que é tão paulista quanto ela — ele, de Tietê; ela, de Taubaté.
Foi ela, por exemplo, que duas vezes livrou a cara de Michel Temer das falsas acusações da Procuradoria Geral da República, convencendo a favor do presidente, e sem mala de dinheiro, os votos dos deputados — os mesmos que antes haviam arrancado dona Dilma e o PT do poder pelo gravíssimo crime de pedalada fiscal — "ora", disse a Velhinha de Taubaté, "foi pedalar ao vento, perdeu o assento".
Chegou o ano de 2018 e os netos abriram contas para ela nas redes sociais. A Velhinha aprendeu a mexer no tal de zapzap, inclusive até hoje é das mais ativas em grupos de família, e com essas engenhocas acabou descobrindo a existência de um deputado que até então não conhecia, mesmo tendo ele passado por seis partidos (todos de gente honesta), sete mandatos e 28 anos na Câmara, onde com certeza lutou muito contra a corrupção e a lavagem de dinheiro, e só não apresentou nenhum projeto porque não havia necessidade.
Era um homem que, de tão abençoado, tão iluminado, até no nome tinha Messias: Jair Messias Bolsonaro, outro paulista como Temer e ela própria, era o nome santo, enviado por Deus. Um candidato que agora jurava de pés juntos, de mãos espalmadas e de olhos fechados que era o Brasil acima de tudo e Deus acima de todos.
Segundo a Velhinha de Taubaté, de 2003 a 2016, o Brasil era a sucursal do inferno, o Brasil queria ser Cuba, o Brasil queria ser Venezuela. Em 2018, ao conhecer o Messias, ela afinou o discurso com ele: "Nos últimos 30 anos o nosso país foi governado pelo comunismo". Com a ajuda de robôs, com disparos em massa, inclusive para todas as redes cristãs, ela dizia que, além dos diabos vermelhos, FHC, Itamar, Collor e Sarney só andavam com um martelo na mão e uma foice na cabeça.
Com seus 103 anos de idade, ela aos domingos deixava Taubaté e ia para a Avenida Paulista gritar: "Comunistas, vão pra Cuba", "Fora, Foro de São Paulo", "Fora, PT", "Fora, Paulo Freire", "Viva Ustra" e "Nossa bandeira jamais será vermelha".
Quando um sobrinho, estudante da USP, postou no grupo da família um vídeo do Messias batendo continência para a bandeira vermelha-branco-e-azul dos Estados Unidos, ela falou que era montagem, mas, se fosse verdade, estava perdoado, pois é melhor o Brasil copiar os Estados Unidos que a Venezuela.
Não demorou e a Velhinha de Taubaté enviou um áudio no zapzap para sua co-irmã italiana, a Velha de Siracusa, chamando esta para a campanha de Bolsonaro, que era um filho de italianos. Aliás, assim como na Itália a Operação Mãos Limpas pariu Berlusconi, aqui a Operação Lava Jato haveria de botar Bolsonaro na cara do gol. "Está na Bíblia", ela dizia, "muitos são os chamados, mas poucos são os eleitos".
No áudio, a Velhinha de Taubaté dizia: o nosso Messias vai acabar com a corrupção, vai acabar com a safadeza do foro privilegiado, não quer foro para sua família, pois só tem gente honesta, ele vai acabar com o toma-lá-dá-cá, vai fazer um governo sem político nenhum nos ministérios, sem ninguém do DEM, sem ninguém do PSDB, sem ninguém da velha política, principalmente sem os corruptos do Centrão; vamos nomear o nosso juiz e nosso herói Sérgio Moro, que vai dar cartão vermelho pro outro time e o nosso time vai ser campeão.
De todas essas previsões, a única que de fato ocorreu foi a última: o juiz de nome italiano expulsou o time favorito e assim abriu caminho para a vitória daquele que era o 2º colocado (com menos da metade dos pontos do 1º, o que foi expulso). E o novo campeão, de nome também italiano, reconheceu o papel do árbitro, e como a pagar uma promessa, nomeou o árbitro para o 1º escalão.
Com a vitória do italiano, com o juiz italiano, a italiana Velha de Siracusa acabou vindo, mas só depois da posse do capitão. E desde então as duas, todos os dias, vão ver e ouvir o presidente na frente do Palácio da Alvorada. Só que, enquanto a Velhinha de Taubaté bate palma e grita "mito, mito, mito", a Velha de Siracusa reza baixinho, em nome do pai, dos filhos e dos espíritos santos: "Dai, ó Deus, vida longa ao governo deste homem". Em seguida, como se ouvisse a pergunta de Dionísio ("Por quê?"), ela responde em pensamento: "Porque este foi encomendado. Outro pior não há".
Marcelo Torres é jornalista, baiano, mora em Brasília, torcedor do Vitória, autor do livro "Os nomes da rosa" (crônicas de humor sobre futebol e literatura)
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/