Alma corinthiana
Por RAFAEL CASTILHO*
Toda vez que se discute o papel social, político e até mesmo simbólico que o Corinthians exerce na sociedade brasileira, para muito além das quatro linhas, cria-se uma polêmica.
Há quem prefira enxergar o Corinthians como um clube de futebol, e pronto.
Há quem deseje ver o clube se tornando uma empresa. Há quem torça para o Corinthians como se o clube fosse uma mera grife, desprezando, ou mesmo ignorando o seu papel social e histórico.
Costumo dizer o seguinte: torcer para o Corinthians não envolve predileção partidária alguma. O Corinthians não está vinculado à nenhuma filiação política. O Corinthians é plural e diverso como o próprio Brasil. Conheço grandes corinthianos, com diferentes matizes ideológicos, ou até mesmo sem ideologia alguma.
Conheço bastante gente que tem como ideologia o próprio Corinthians em si mesmo (e pra minha surpresa, com o passar dos anos, vejo até algum sentido nisso). Conheço até corinthiano com visão de mundo anticorinthiana (dá pra entender?).
Talquei, não que eu concorde, a pessoa pode até torcer para o Corinthians e ter uma visão política menos progressista. Mas tem uma coisa, não dá para deixar de considerar ou rejeitar o que é a história do Corinthians. O papel que o Corinthians exerceu, e ainda exerce, como instrumento de inserção e representação simbólica das camadas mais populares na sociedade brasileira. A capacidade que o Corinthians tem de dar protagonismo a quem não tem. De dar voz a quem não tem. De dar vitórias a quem só perde. De dar participação a quem é sempre excluído.

É só olhar para a formação social da cidade de São Paulo. Mesmo sendo o maior clube da cidade, o Corinthians não se chama São Paulo, como o Barcelona é o Barcelona, o Manchester é o Manchester, o Madri é Madri, etc. O Corinthians é o Corinthians porque ele é uma espécie de lado B da nossa sociedade. O Corinthians é o Corinthians porque nós somos uma outra cidade dentro da cidade, um outro Brasil dentro do Brasil. Por isso somos quase sempre o clube dos retirantes, dos refugiados, dos ignorados, dos sufocados. O Corinthians se fez como clube dos "invisibilizados". De quem nunca tem vez.
Quem não concorda muito com essa interpretação pode olhar com alguma atenção o que foram os primeiros anos de formação do Corinthians. Como ele se insere num esporte dominado e controlado pela oligarquia local. Basta olhar como ele foi absolutamente excluído por essa oligarquia e como foi expulso da entidade que organizava o futebol ao ganhar seu primeiro título. Como o Corinthians quase deixou de existir em 1915. O que está registrado na ata das reuniões do clube naqueles anos. Aliás, foi justamente nesse primeiro momento em que tivemos a nossa primeira taça de campeão penhorada para pagar as dívidas de uma sede social nova. Um presidente emocionado, dizendo aos prantos que fez tudo isso porque os ricos queriam humilhar o Corinthians. Porque viemos de um bairro humilde. Porque não conseguiam vencer o Corinthians nas quatro linhas, então precisavam nos excluir. Que precisávamos de uma sede mais bonita para sermos respeitados. E outros tantos sócios rebatiam o presidente dizendo que deveríamos ter ficado no Bom Retiro e ter assumido quem somos. Nada muito diferente de alguns dos debates que temos até hoje entre nós.
O fato é que até hoje funciona assim. Os campeonatos que ganhamos "não tem validade", ou "foram roubados". Todas as nossas conquistas materiais e desportivas são desmerecidas.
O corinthiano pode ter a visão política que quiser, mas não pode fechar os olhos para a história. Não pode deixar de enxergar que entre 1955 e 1977 foi o período em que a torcida do Corinthians mais cresceu. Justamente no período sem títulos do Corinthians. E por quê? Foi milagre? Não, fiel, milagre algum. Esse também foi o período em que esta cidade mais crescia. E porque os milhões que aqui se acumulavam em vilas e favelas não escolheram algum outro clube que era um ganhador de títulos para torcer e se associar emocionalmente às vitórias? Porque era o Corinthians que tinha correspondência com a vida vivida por essas pessoas. A vida dessas pessoas também era repleta de sofrimento e privações. Porque eles viviam nesse Lado B da cidade de São Paulo. Eram a face sufocada dessa sociedade. "O grito sufocado de um povo", como disse o Osmar Santos no gol do Basílio em 1977.

Como não ter para sempre gravada na memória a voz serena de Dom Paulo Evaristo Arns, corinthiano fiel, exortando para seu rebanho na Revista Placar: "não existem derrotas definitivas para o povo".
E certamente as derrotas não foram definitivas. Vejam a importância histórica que o Corinthians cumpriu na redemocratização do Brasil? O mundo hoje reconhece o papel, a importância, a coragem da Democracia Corinthiana.
Repetindo. O Corinthians é diverso e plural. Abriga diferentes modos de pensar. Diferentes visões de mundo. Ainda bem! Porque no coração dos corinthianos há o desejo de liberdade. Liberdade pra você! Somos espíritos livres!
Mas, meu amigo, não dá pra virar as costas para o caráter popular do Corinthians. O papel histórico que ele cumpre.
Irmão corinthiano, tudo o que ocorre hoje serve para que você nunca duvide do tamanho do Corinthians! Do espaço que o Corinthians ocupa nessa sociedade e quais são as forças que se organizam desde 1910 para destruir o Corinthians.
Porque não somos só um clube de futebol.
Somos o orgulho do nosso povo. Somos a autoestima da nossa gente. Somos a consciência de classe possível nos nossos dias. Somos a coluna vertebral do povo sofrido.
O Corinthians é um símbolo da vitória de um povo. E quem estudar um pouquinho de história, haverá de entender que os símbolos tem poder!
*Rafael Castilho é Sociólogo da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e Coordenador do Núcleo de Estudos do Corinthians
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/