O dia em que Zico salvou os craques da Seleção
Nesta época de peladas, que no futebol brasileiro periga durar do início de janeiro ao fim de dezembro, ouvi uma história que não lembro de ter visto publicada.
É uma história tão raiz, mas tão raiz, que alude a um jogo do Zico que nem o Moraes, tremendo torcedor, esteve presente.
Uma memorável peleja que quase ninguém viu. Sem bandeiras, sem bateria, sem cantos da torcida – ou seja, quase igual ao Maracanã de hoje. Mas, como o umbandista apressado, vou direto ao ponto.
Zona Oeste do Rio de Janeiro, ali pelos idos de 1968, 1969. O local exato da pelada é impreciso. Uns lembram de um campo em Jacarepaguá. Um dos participantes, no entanto, crava: foi no Sítio Tio Patinhas, no Recreio dos Bandeirantes.
O time anfitrião era da pesada, capitaneado pelo bicampeão mundial Vavá "Peito de Aço" (Edvaldo Izídio Neto para os íntimos), já aposentado e com uma barriga ronaldeana, mas o mesmo faro de gol. Além do artilheiro da Copa de 1962, estavam em campo o ainda magrinho Jair Rosa Pinto (1921–2005), goleador na Copa América de 1949, craque da Copa de 1950 e exímio cobrador de faltas; e também o sau-doso ex-zagueiro rubro-negro Milton Copolillo (1934–2012), tricampeão carioca pelo Flamengo – além de outros veteranos e algumas figuraças, como o hoje ídolo do Ceará Serginho Amizade, seu irmão Humberto e outros boleiros.
Pelo time convidado, recheado de novinhos, 11 garotões de 20 e tantos anos, famintos por pelada, alguns juniores de times grandes do Rio e outros aspirantes, todos com saúde de vaca premiada.
Não estava sopa para os coroas, e o bicho começou a pegar: ao fim e ao cabo do primeiro tempo, Vavá & cia já tomavam de 3 a 0, sem choro nem vela.
Foi quando o célebre camisa 10 apareceu no horizonte.
Era Eduardo Antunes Coimbra, o Edu do América, co-tadíssimo para ser o reserva de Pelé na seleção e então um dos melhores jogadores do Campeonato Carioca. Vavá (1934–2002) mal deixou o meia saudar os companheiros e já foi implorando, entre bufadas:
– Edu, vem, entra aqui.
– Vavá, me desculpa, mas o América joga esta semana. Se eu me machuco como vai ser?
– Machucar que nada. Me ajuda, estamos tomando um banho aqui dos garotos.
Edu fincou os pés fora das quatro linhas, exemplar pro-fissional que era, e reafirmou que não daria. Mas deixou a sugestão:
– Eu não posso mesmo. Mas olha, trouxe dois dos meus irmãos que podem jogar.
A vaca agora que ia para o brejo, pensaram alguns bo- leiros do time anfitrião. Em vez do grande Edu, calçavam as chuteiras para entrar o Nando e um moleque de uns 15 anos, ambas as canelas mais finas que um dos pulsos de Vavá.
– Que seja – resignou-se provavelmente o Peito de Aço –
Afinal quem não tem cão caça com galo.
Segundo tempo, e os Antunes entraram: um na ponta
direita e o outro na esquerda – e fosse o que Deus quisesse.
Quem conta o desfecho do rachão é o eterno boleiro José Luiz Almeida, 20 anos à época, e que ri da história até hoje.
– Foi o terror – conta José Luiz, de 68 anos, que virou advogado. – Quando começou o desespero, me puseram na lateral para segurar o moleque que estava acabando com a pelada. Mas não deu, tomei uma canseira na beirada do campo, e toda hora o Vavá recebia a bola na cara do gol.
E assim fiquei sabendo quem era Arthur Antunes Coimbra. Com direito a vira-vira, goleada e requintes de crueldade, a peleja terminou em algo parecido com 7 a 4, o placar do Jogo das Estrelas organizado neste fim de dezembro por Zico, quase 50 anos depois, diante de quase 50 mil espectadores nas arquibancadas.
Entre as duas peladas, a do Sítio Tio Patinhas e a do Maracanã, quantas saudades, gols e conquistas.
Mas será que Zico, após tantas passagens e bagagens,
ainda lembraria do dia em que salvou Vavá, Jair e outros cobrões do passado?
Para tentar descobrir, arrisquei um email sem graça para o próprio Zico, recordando o causo, no finzinho de dezembro.
A resposta veio na noite de 2 de janeiro, macia como o passe de efeito que deu para Adriano, no Jogo das Estrelas:
"Marcelo, lembro sim", confirmou o Galinho de 64 anos, antes de fornecer vários detalhes da pelada. "Entrei na ponta-direita e o Nando na esquerda e o Vavá deitou e rolou. Eu devia ter uns 15 anos!".
Quem viu, viu. E quem não viu, só resta ir ao Maracanã no fim do ano aplaudir o mito, o rei que mesmo novinho não perdia a majestade.
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Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/