Era uma vez Flamengo
POR MAURO C. BANDEIRA DE MELLO
Morávamos numa casa no alto da Tijuca, um pouco acima do Morro do Borel.
Havia um pequeno campo de futebol.
Quatro na linha, um no gol.
O piso de cimento áspero não perdoava os joelhos e a trave, precária, volta e meia caía na cabeça de alguém.
O pessoal da rua e do morro chegava sem aviso.
Tirava-se o par ou ímpar e a pelada começava.
Tinha meu primo Nando, Duda, Bob, Gico, Geraldinho Bang-Bang, Baldú, Pintinho Branco, Pintinho Preto…
O último, nosso orgulho, se tornou o grande Carlos Alberto Pintinho, jogador da Seleção Brasileira.
Eu era o menor de todos e só passei a jogar as peladas mais tarde.
Mas participava da minha maneira, instruído pela minha irmã.
Quando não empurrava os jogadores dentro do laguinho do quintal, recolhia suas camisas e jogava na privada. Depois, corria, recebia cascudos e não adiantava atribuir tudo à Ana, a Richelieu de saias.
Quando a bola não rolava lá em casa, rolava no Maracanã.
Éramos assíduos nas arquibancadas, um ambiente saudável, sem barreiras.
As torcidas adversárias entravam e saíam pelos mesmos portões.
Sentavam-se lado a lado no meio de campo e, quando o público era pequeno, dava para acompanhar o ataque nos dois tempos do jogo.
Embaixadinha com laranjas, radinhos de pilha, narração do Jorge Cury, comentários do João Saldanha e do Mário Vianna (com dois enes)…
Bons tempos… no futebol, eu sei.
Vivíamos em plena ditadura militar. Médici era Flamengo e, não raro, a Suderj informava sua presença na Tribuna de Honra. Que desonra…
De lá para cá muita coisa mudou para melhor, lógico, com a redemocratização do país, e para pior.
Destruíram o Maracanã. Os jogos jamais voltarão a ter 150 mil pessoas. O preço dos ingressos ficou impagável para a maioria e a frescura se instalou no estádio: escadas rolantes, ar condicionado nos corredores, camarotes e mais camarotes, com bufês e banheiros sem fedor… Não vendem mais laranja do lado de fora e criaram os setores Norte, Sul, Leste e Oeste… Um labirinto. E tudo isso em nome dos negócios. A rigor, dos maus negócios, pois ninguém sustenta esse Novo Maracanã. A PM não permite a venda de todos os ingressos, separa as torcidas e nunca houve tanta violência.
Mas conto isso tudo porque abri o jornal e vi a foto do atual presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, sorrindo, entregando uma camisa do Flamengo a Jair Bolsonaro, que nunca foi Flamengo, apesar da afinidade com o Garrastazu Médici.
Lembrei-me da década de 1970, mas sem a felicidade do futebol, só com as memórias tristes: "ame-o ou deixe-o"… "esse é o Brasil que vai pra frente"…
Que nojo! Landim, sem máscara, mostrou sua cara. Deveria entregar camisas do Flamengo nos hospitais, aos profissionais da saúde, que lutam todos os dias para salvar vidas. Mas preferiu puxar o saco de Bolsonaro e passar um péssimo exemplo para a maior torcida do Brasil no meio de uma pandemia.
Que vergonha, Flamengo! Agora, faz todo sentido por que tentaram expulsar meu irmão Duda do clube, ex-presidente entre 2013 e 2018.
Ele é completamente diferente desse Flamengo patético, partidário, bolsonarista, frio e insensível.
Se eu pudesse me exilar do Brasil nesta Era da Boçalidade, o faria e convidaria os amigos. Mas não dá.
Já deixar o Flamengo é, sim, possível.
E só não jogo minhas camisas, "meus mantos", na privada, porque terei que desentupi-la.
Vou dar um tempo do Flamengo e, à noite, na hora do panelaço, inspirado no grito da torcida, vou gritar bem alto da janela: ei, Landim, VTNC, ei, Bolsonaro, VTNC!
Um dia, espero poder voltar.
—
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/