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Blog do Juca Kfouri

Reflexões apocalípticas

Juca Kfouri

02/04/2020 12h12

Por FERNANDO GUIMARÃES RODRIGUES*

A humanidade, por parte de cada um de nós, precisa mergulhar em si, encontrar o que realmente importa e trazer à tona.

Alguns farão isso em choro, outros em estridentes gritos dos seus terraços – quando terraço houver, outros com um olhar aterrorizado, mas cada qual com a sua alma desnudada.

É desde já, oportuno olhar para trás e nos encontrarmos.

Talvez julgar a si mesmo. Sorvir a dura realidade com a devida resiliência e traduzí-la em solidariedade.

Alguns valores de outrora já não fazem ou farão mais sentido, outros passam a ser mais necessários do que nunca.

Onde havia presunção e indiferença, agora se expõe a nossa fragilidade e a dependência.

Este é portanto o tempo de meditar, de fazer a poda, de respeitar o medo sem deixar-se a ele curvar, mas de se preparar espiritualmente para o porvir.

As respostas virão sem tardar, disso cuidará a realidade.

O melhor é que a elas precedam nossos questionamentos. Os mais sinceros e corajosos.

A nós e a tudo. Nada será sem sofrimento e ninguém mais poderá se fazer alienado.

A dor chegará impiedosa aos que sempre sofreram por todos, mas também rangerá a porta de tantos que só conhecem os seus.

Não há nada de bom nisso, o único sentimento libertador será a compaixão. O dar-se.

Muitos dos conflitos que alimentávamos agora nos mostram senão tolos.

Outros conflitos por sua vez merecerão ser enfrentados e vencê-los será um divisor de águas civilizacional.

De que vale um sistema que permite alguns poucos alçarem fortunas de condição sobre-humana enquanto temos um deficit habitacional de 8 milhões de residências, 35 milhões de brasileiros não tem acesso à água tratada, 100 milhões não possuem esgoto e metade dos brasileiros vive com menos de R$14 por dia?

Isso sempre nos disse respeito. Agora somos intimados.

Não se trata mais de buscar utopias.

Temos uma distopia para chamar de nossa.

E não vamos superá-la nos permitindo a costumeira impassividade refugiada nas nossas bolhas de conforto.

A política que sempre é conduzida com o farol baixo dos interesses do capital sem mirar nada mais adiante, precisa transcender a isso para expressar melhor o sentido que queremos dar e a herança que vamos deixar da nossa passagem por esse planeta.

Claro que isso não será uma dádiva dos poderosos. Não é deles que virá qualquer mudança.

Mas ela pode vir das convergências que nós sociedade podemos construir. É isso que precisamos semear.

Cultura, ciência, justiça, economia inclusiva, fraternidade.

São algumas das chaves imprescindíveis para sairmos do apocalipse que já havíamos instalado antes do vírus.

Mas as mudanças não virão tão somente da política. É preciso confraternizar. Tecer melhores vínculos interpessoais. Percebam. Sobra mais tempo e ao mesmo tempo sentimos que não há mais tempo para a hipocrisia. Eu sinto. Você não?

É pois a hora de amores sinceros. Hora de alargarmos e aprofundarmos os nossos horizontes de amor. Até quando vamos permitir que essa palavra nos incomode tanto como um tabu? Amor. Até quando ela precisará se seguir de explicações e formas delineadas? Ela só precisa ser sincera e nada mais. Ame sua família, ame seus amores, ame seus amigos, ame as pessoas da sua comunidade, ame o enfermeiro, o repositor de supermercado, o coletor de lixo e a todos que não sabem o seu nome mas cuidam de você até nas horas mais difíceis. Ame quem puder amar e demonstre. A cada dia da sua clausura telefone para alguém que ama (sem mandar mensagem antes).

Surpreenda à moda antiga. Deixemos os gestos de afeto se multiplicarem. Vivamos o intermédio entre nós e o outro, tal qual o poeta. Faça, aprecie, viva a arte. Ela nos amplia. Ela nos traduz. Ela nos amamenta. Dê mais atenção aos hábitos simples e às grandes causas.

Dê o melhor de si e fique em casa.

Serão dias custosos e não sei de que viverão os humoristas.

Mas a vida é mais complexa que uma tarde de verão. Estar vivo é aceitar essas condições e prerrogativas do destino. Tudo alterna entre a dor e a alegria. São nossas histórias. Essa é a história do nosso tempo.

Será muito difícil no futuro contá-la aos mais jovens. Mas poderemos ter alegria em falar das mudanças que nós produzimos a partir do momento em que fomos tocados. De quando deixamos de sermos meros espectadores para sermos protagonistas do nosso tempo, de nossa vida, de nós.

Em breve vamos nos ver.

Talvez ainda não poderemos nos abraçar e nos beijar como nossos instintos. Mas poderemos olhar no fundo dos olhos de uns aos outros como jamais fizemos antes.

Como jamais sentimos antes. Isso será transformador.

*Fernando Guimarães Rodrigues é cientista social e coordenador do movimento Direitos Já!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/