Topo

Blog do Juca Kfouri

O Futebol nos tempos de pandemia: o que o surto de gripe suína em 2009 explica para o futuro do futebol brasileiro na era pós Coronavírus

Juca Kfouri

08/04/2020 20h17

POR MARCO SIRANGELO, outfieldconsulting.com

Uma vez que o surto ocasionado pelo COVID-19 ainda não tenha sido efetivamente controlado, ainda restam incertezas relacionadas ao retorno das atividades esportivas. Não se sabe quando e em quais condições atletas e competições retornarão. O que sabemos, no entanto, é que o impacto causado pela pandemia, seja de cunho econômico, esportivo ou social será forte e sem precedentes.

Assim como colocado pela Fifa em seu relatório de recomendações legais divulgado no último dia 7 de abril, desde a Segunda Guerra Mundial o futebol não passava por uma suspensão de suas atividades em proporções tão elevadas. Porém, diferente de outras épocas, a atual situação é inédita, pois trata-se de uma paralisação ocasionada por uma doença extremamente contagiosa, afetando toda a cadeia econômica envolvida não somente no esporte, como nos demais setores da sociedade.

É difícil imaginar que, enquanto o Coronavírus não tenha uma cura validada, eventos que envolvam aglomeração, como é o caso de jogos de futebol, possam ocorrer normalmente. Neste ponto, é chato, porém importante ressaltar a provável relação entre a partida entre Atalanta e Valência pelas oitavas da Champions League com um aumento exponencial no surto da doença na região italiana da Lombardia. Por tratar-se de um jogo de proporções históricas, a grande vitória da Dea ocasionou aglomerações não somente no estádio (quase 45 mil espectadores estiveram no San Siro), como também ao longo da cidade de Bérgamo. Além disso, 35% do elenco do Valência testou positivo no período após a partida.

Se a paralisação do esporte parece ser momentânea (esperamos), a retomada da atividade econômica relacionada ao esporte deve demorar mais algum tempo. E uma das principais consequências está na provável redução no número de torcedores nos estádios. De acordo com um estudo realizado por Seth R. Gitter, da norte-americana Towson University, o número de espectadores em jogos de baseball no México reduziu entre 15% e 30% durante o surto do vírus H1N1 (originário justamente do México) em abril de 2009. Além disso, as medidas de restrição adotadas na sequência pelo governo mexicano naquela ocasião auxiliaram em uma queda de 20% no total de torcedores nos estádios de futebol.

Durante esse período, o campeonato mexicano de futebol também sofreu uma relevante redução no número de espectadores por partida, conforme verificamos no gráfico abaixo. Comparando apenas o Clausura da temporada 2008/09 (fase disputada durante os meses de janeiro e maio de 2009, portanto exatamente durante o período de surto e após a adoção de medidas restritivas), a queda no total de público foi de quase 15%. Como a média de espectadores levou outras duas temporadas para retornar ao patamar anterior ao surto de H1N1, podemos inferir que este evento, bem como a adoção de medidas restritivas como forma de combater a epidemia, ocasionaram não só uma redução no número de espectadores, mas também uma mudança no comportamento de consumo dos torcedores.

A questão envolvendo os torcedores e como eles irão consumir os jogos de seus clubes é altamente complexa, mas o que já se sabe é que o COVID-19 está trazendo uma adesão maior a serviços digitais e novas tecnologias. Neste cenário, é fundamental que os clubes entendam quais as alterações que surgirão na jornada de consumo de seus torcedores e desenvolvam mais ofertas e pontos de contato pautados no "off-venue" e no digital, utilizando os Programas de Sócio Torcedor (historicamente muito atrelados a benefícios em torno de ingressos e experiências em dias de jogo) como ferramenta central dessa mudança, mitigando, assim, essa perda de receita B2C (bilheteria e sócio-torcedor) que é certa ao menos para os próximos 12 meses.

Essa análise mais detalhada é importante, pois mesmo quando afrouxadas, espera-se que medidas de restrição permaneçam em vigor ainda por tempo indeterminado. Ou seja, mesmo que as pessoas possam retomar suas atividades cotidianas, eventos com aglomeração permanecerão desaconselhados. Seguindo o exemplo mexicano, é difícil não considerarmos uma queda mínima próxima de 20% no número de torcedores por partida. Por esta lógica, o impacto na estrutura financeira nos clubes será bastante significativo. De acordo com a consultoria Deloitte, 15% da receita dos clubes mais ricos da Europa está diretamente ligada com o dia do jogo (ingresso + alimentação, por exemplo). No Brasil, de acordo com o Itaú BBA, esse índice também representa 15% de tudo que os clubes faturam, mas Palmeiras e Corinthians, dois dos clubes que mais arrecadam com bilheteria no país, possuem, respectivamente, 24% e 20% de suas receitas provenientes de bilheteria.

É de se supor, também, que por conta do caráter altamente contagioso do COVID-19, políticas como a realização de jogos com portões fechados e com capacidade de estádio reduzida entrem em vigor. Neste caso, o impacto seria muito mais alto. O cenário permanece ainda mais pessimista caso consideremos o efeito da crise nos patrocinadores e, principalmente, nos detentores de direitos de transmissão, como já é possível observar em casos envolvendo a Rede Globo e os campeonatos estaduais, e outras situações em que patrocinadores estão cancelando contratos ou suspendendo pagamentos.

Segundo os dados analisados até o momento, apesar de grave, a epidemia de H1N1 teve índices letais e taxa de transmissão consideravelmente inferiores aos do COVID-19. Por conta disso, os dados no México não retratam com exatidão a variação negativa esperada na retomada após a atual pandemia que vivemos – a expectativa é de um impacto mais forte em toda a estrutura financeira do futebol, infelizmente. A boa notícia é que, mesmo em dificuldades, o retorno das atividades esportivas deverá ser carregado de simbolismo e união entre os agentes participantes dessa indústria: Clubes, confederações, atletas e torcedores.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/