Pelo direito de espirrar – e tossir, ao mesmo tempo.
POR AFONSO BORGES*
O outono chegou no Brasil. Como todos sabem, é a estação na qual os hospitais ficam lotados de alérgicos. As folhas caem e o pólen surge. Frequentemente eu me sinto um nariz. Eu sou todo um nariz entupido. Até os 40 anos, eu nunca respirei. Minha infância foi de gripes, resfriados e muito, mas muito Benzetacil na bunda. Doía tanto que não era incomum sair da Farmácia Santa Marta mancando. Isso sem falar do tamanho da agulha – até hoje o glúteo tem memória da dor da picada.
Aos 40, decidi operar, com todos aqueles nomes difíceis de pronunciar: desvio de septo, pólipo, carne esponjosa. Quando acordei, estava lá a Dra. Mirian Cabral, de máscara e os olhos miúdos. Subiu uma sensação lisérgica, estonteante, estratosférica, uma viagem de ácido! Era oxigênio! Nunca tinha aspirado tanto, quase desmaiei. Assim, quarentão, finalmente, comecei a respirar.
Mas o tempo me trouxe aqui, às vésperas dos 60. E 18 anos se passaram da cirurgia. Os tais nomes difíceis voltaram e me encontro, novamente jovem, com os mesmos sintomas: sinusite, tosse, espirro (ah, o espirro…) e alergia, muita alergia. Hoje tive vontade de fazer uma camiseta com o nome SIM grande e "sou alérgico" pequeno.
O bom Antônio Grassi me lembra do conto de Gogol, "O Nariz" que inspirou Shostakovich a compor uma ópera cômica sobre a qual que William Kentridge fez vídeos histriônicos. Estão lá no Inhotim. Mas o barbeiro que encontrou o nariz de um burguês no copo não me transforma em um nariz – reclamei com o Grassi. Mas estava errado: é esta a questão, hoje. Eu sou um nariz.
E um nariz entupido, no outono, estação na qual o ar, o tal oxigênio, fica lotado de pólen das folhas das folhas de relva. O livro no qual Whalt Withman fala de respiração, o tempo todo. Sim, eu fiz, quando jovem, um teste de alergia, aquele estranho, no qual uma enfermeira inodora e simpática espeta, subcutânea, umas 15 substâncias, em bolhas mínimas, no seu braço. O meu foi o esquerdo, não esqueço. Cada uma é um tipo – ácaro, querosene, hidromel, cachaça, sei lá. O meu diagnóstico foi, digamos, definitivo: – você é alérgico a fungos do ar. Parei o mundo e perguntei: – moça, por acaso os fungos do ar não moram no oxigênio? Sou, por acaso, alérgico ao planeta Terra, ao universo?
Agora vamos ao principal motivo desta crônica: – sim, eu sou um cara que espirra. Em outros tempos, era matemático, ciclo de 10 vezes seguidas. Atualmente, pior: ando espirrando e tossindo, ao mesmo tempo, durante o almoço. É uma experiência de vergonha não alheia incrível isso de aspergir comida na mesa, na frente de desconhecidos, de preferência. E parece trombada em cruzamento – quando você percebe, só ouve a lataria amassando. Já aconteceu comigo duas vezes, juro. Minha médica explicou o novo: é alergia.
Pronto, acabei. Ah, eu espirro gritando Atchim – treinei a infância inteira, à exaustão. Eu sou todo um nariz entupido e tenho a esperança de não ser linchado, ao espirrar tossindo.
*Afonso Borges é ativista cultural, escritor e jornalista.
**Texto originalmente publicado em O Globo.
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/