Os oitos
POR LUIZ GUILHERME PIVA
Só ele, entre os moleques, tinha bicicleta. Velha, uma Philips preta, "de mulher", que um freguês deixara na loja do tio – talvez em pagamento de algo. Para ele foi o ideal para aprender a andar ainda bem pequeno.
Rodava nas ruas de terra, nas trilhas dos sítios, no meio do capim, sob os olhos das outras crianças. Quando ela tinha o descanso, parava-a imponente feito um potro onde tivesse que ir. Depois passou a deitá-la com carinho, como se a pusesse pra cochilar.
No bagageiro, presa na alça, uma bola de couro. Meio murcha, mas que ele não largava. Era seu instrumento para garantir presença nas peladas, já que os meninos, maiores do que ele, só tinham umas leves, de plástico, que o vento carregava ou que furavam em qualquer arbusto.
Mas nem precisaria. A pelada era o único momento em que todos conseguiam andar na bicicleta – que ele não emprestava nem por um segundo pra ninguém.
Sempre o escalavam, não o tiravam nem quando entrava o time de fora – logo alguém lhe cedia a vaga. Mas não pela bola, nem por ele ser um craque – não era.
É que o campinho era numa baixada aonde só se chegava por um barranco pedregoso. Ele tinha que deixar a bicicleta lá em cima (dormindo sob o virol de capim) e descer com cuidado, junto com os demais.
Era a hora. Os meninos se revezavam no alpinismo, chegavam ao topo e acordavam a bicicleta já montando-a e pedalando enquanto o jogo seguia lá embaixo.
No final da pelada, escurinho, ele a encontrava repousada, serena, no acolchoado em que a deixara.
Prendia a bola no bagageiro, dava tchau e, diminuindo, sumia na noite.
Os outros iam a pé, olhando no chão as marcas dos pneus em círculos e oitos infinitos que eles tinham feito nos seus passeios ocultos.
Não sei se ele algum dia descobriu a trama. Mas a bicicleta, depois de um bom tempo, já idosa e fraca, acabou – ele talvez até a tenha velado e sepultado.
E não houve mais pelada. Ele insistiu, chamou os amigos, incentivou. Sem sucesso: eles não iam. Desistiram.
Mesmo gostando muito de jogar, não era por isso que eles marcavam o futebol.
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora Iluminuras
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/