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Blog do Juca Kfouri

Esquerda, o resgate do sonho

Juca Kfouri

13/01/2020 20h34

POR FREI BETTO*

Pertenço à geração que teve o privilégio de fazer 20 anos nos anos 60: Revolução Cubana, Che, Beatles, Rei da Vela, manifestações estudantis, Alegria, Alegria, Gláuber Rocha, McLuhan, revista Realidade, Marcuse, Maio de 68, João XXIII, naves espaciais etc.

Era a geração dos sonhos. "Sonhar é acordar-se para dentro", lembra Mário Quintana. Estávamos permanentemente despertos. Nossas quimeras não eram acalentadas por drogas, mas por utopias.

Segundo a teoria psicanalítica, todo sonho é projeção de um desejo. Nossa geração desejava ardentemente mudar o mundo, instaurar a justiça social, derrubar a velha ordem.

O sonho quebrou-se ao tocar a realidade. A ditadura militar (1964-1985) encarou como subversivos nossos protestos e conteve, com cassetetes e tiros, nossas passeatas. Nossos congressos estudantis terminaram em prisões e, escorraçados para a clandestinidade, não nos restou alternativa senão o exílio ou a resistência. Em nossas utopias os carrascos abriram feridas, e dependuraram nossos ideais no pau-de-arara. O que era canto virou dor; o que era encanto, cadáver. A roda-viva se encheu de medo e o nosso cálice de "vinho tinto de sangue".

Nossos paradigmas ruíram sob os escombros do Muro de Berlim. Não era o socialismo das massas nem os proletários no poder. Era o socialismo do Estado, pai e patrão, atolado no paradoxo de agigantar-se em nome do fim iminente da luta de classes. O economicismo, a falta de uma teoria do Estado e de uma sociedade civil forte e mobilizada, levaram o rio das fantasias coletivas a transbordar sobre as pontes férreas dos engenheiros do sistema. O socialismo real saciava a fome de pão, não o apetite de beleza. Partilhava bens materiais e privatizava o sonho. Todo sonho estranho à ortodoxia era visto como diversionista, ameaçador.

Astuto, o capitalismo socializa a beleza para camuflar a cruel privatização do pão. Aqui, todos são livres para falar; não para comer. Livres para transitar; não para comprar passagens. Livres para votar; não para interferir no poder. O Muro de Berlim ruiu e, ainda hoje, a poeira levantada embaça os nossos olhos.

Solteira de paradigmas, a esquerda é uma donzela perplexa que, terminada a festa, não consegue encontrar o caminho de casa. Há muitos pretendentes dispostos a acompanhá-la, mas ela teme ser conduzida ao leito de quem quer estuprá-la. Ansiosa, envereda-se pelo labirinto do eleitorarismo e se perde no jogo de espelhos que exarcebam o narcisismo de quem se maquia no reflexo das urnas. Deixa-se arrastar pela rotatividade eleitoral, onde ideais e programas são atropelados pela caça a votos e cargos. E, quanto mais se aproxima das estruturas de poder, mais se distancia dos movimentos populares.

É bem verdade que, ao assumir a administração pública, investe em programas sociais, aprimora o acesso à saúde, à educação, moradia e cesta básica. Contudo, desprovida de andaimes, não faz dessa massa um novo edifício teórico, alternativo à globocolonização neoliberal que execra a cidadania e exalta o consumismo, repudia os direitos sociais e idolatra o mercado.

A maré sobe – Equador, Chile, Argentina – mas, na praia, pescadores acostumados a selecionar os peixes têm os olhos cegos pelo reflexo do Sol. A história cessou?

Fora da esquerda, não há saída para a miséria que assola o planeta (1,3 bilhão de pessoas). A lógica do capitalismo é incompatível com a justiça social. O sistema requer acumulação; a justiça, partilha. E não há futuro para a esquerda sem ética, utopia, vínculos com os pobres e coragem de dar a vida pelo sonho.

Hoje, o socialismo já não é apenas questão ideológica ou política. É também aritmética: sem partilhar os bens da Terra e os frutos do trabalho humano, os quase 8 bilhões de passageiros dessa nave espacial chamada Terra estarão condenados, em sua maioria, à morte precoce, sem o direito de desfrutar o que a vida requer de mais essencial para ser feliz: pão, paz e prazer.

Resta, agora, a esquerda acordar para o sonho.

*Frei Betto é escritor, autor de "Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista" (Rocco), entre outros livros.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/