O futebol e o vestibular
POR LUIZ GUILHERME PIVA
Com a proximidade dos vestibulares no final do ano, é preciso se dedicar intensamente aos estudos. Muitas vezes deve-se abrir mão de alguns prazeres, como cinema, baladas, clubes, etc. Mas não do futebol.
Na verdade, o futebol ajuda na preparação dos alunos. Todas as disciplinas podem ser estudadas enquanto se assiste a uma partida e se joga uma pelada.
O Inglês, por exemplo, dá nome ao próprio futebol (football), à bola (ball), ao gol (goal), a lances (penalty) e à maioria das posições, que no início eram pronunciadas no Brasil como no inglês e depois foram adaptadas ou traduzidas, como centroavante(centerforward), beque (back) e meio-campo (midfielfer) – mas todas elas frequentemente são chamadas pelas torcidas pelo mesmo termo: burro. Exceto o goleiro (golkeeper), conhecido também como frangueiro (chicken breeder).
Uma exceção, para quem optar pela prova de Espanhol, é zaga, que na língua original designa retaguarda de um pelotão de guerra. Mas a origem é árabe (saq), que quer dizer rebanho. Curiosamente, definem-se assim os dois tipos de defesa de um time: os zagueiros ou jogam dando botinadas ou são pasmacentos. Outra é volante, que deriva do nome um jogador argentino (Carlos Volante) que atuou no Flamengo como meia defensivo no início dos anos quarenta. Hoje em dia se usa o termo cabeça de área ou cabeça de bagre, que são sinônimos (e com isso adiantamos um tópico de Português, de que trataremos mais à frente).
Fique tranquilo quanto ao Titês: por enquanto ele não foi adotado como idioma e não cai no vestibular.
A bola, principal elemento do jogo, permite estudar Matemática. Ela é um poliedro arquimediano que se chama icosaedro truncado, composto por 20 hexágonos e 12 pentágonos – de quebra, pode-se estudar o teorema de Euler para determinar o número de arestas (90) e de vértices (60). Para os pernas de pau, contudo, ela é quadrada. E para uma corrente nova de dirigentes do esporte, é plana. De todo modo, a geometria da bola é muito rica.
Na Física a bola permite conhecer o Efeito Magnus, que ocorre quando a rotação de um objeto altera sua trajetória – por exemplo, numa cobrança de falta no ângulo (de novo a geometria) ou num chute de trivela, que produzem curvas em pleno ar. Craques obtêm Efeitos Magnus que viram gols; pernas de pau arrancam tiros de meta ou (acreditem!) laterais.
Ainda na Física, podem-se estudar inércia (não estou falando dos reservas, mas de um tipo de ação), energia (costuma faltar em alguns estádios em momentos decisivos), velocidade (o ex-ponta-direita Euler, por exemplo – mas cuidado: não foi ele quem formulou o Teorema acima), movimento (a ola), tempo (aqui se pode usar o VAR como auxílio nos estudos) e muito mais.
A Biologia e a Química também estão presentes. A alegria da torcida e dos jogadores no momento do gol produz enorme descarga de dopamina, um neurotransmissor monoaminérgico que gera a sensação de grande euforia no organismo. Há torcedores e jogadores que produzem a mesma reação com uso de outras substâncias químicas, mas estas fogem ao nosso campo de estudo e já adentram o do Direito – que não cai no vestibular.
Para a manutenção do gramado também se usam, por exemplo, fertilizantes agrícolas como cloreto de potássio, fosfato monocálcico e sulfato de amônio. Há uma corrente que defende o uso de fertilizantes em todos os tipos de plantação no território nacional, talvez para difundir o esporte mais popular do país, mas isso também pertence a outras matérias, como Política e Finanças, e não cai no vestibular.
A História tem aplicação mais óbvia, com a evolução do esporte demarcando momentos fundamentais das nossas vidas: é comum dividirmos nossas histórias pessoais e a do país em Copas do Mundo: o ano do primeiro namoro, o da maioridade, o de Dunga e Collor – bom, deixa pra lá. Há uma corrente de historiadores que defendem alterar todos os calendários (cristão, judaico, etc.) pelo baseado no nascimento de Pelé: teríamos a era a.P. e a era d.P. Isso afeta o próprio jogador, cujo nome passa a também ser dividido cronologicamente: Edson era antes do nascimento; e Pelé, depois.
A Geografia está presente no estudo dos relevos dos campos e até na divisão dos Hemisférios Sul e Norte, como ocorre no estádio Zerão, em Macapá, cujo campo tem a linha de meio-campo traçada pela do Equador – e há sérias implicações climáticas e meteorológicas, por exemplo, no fato de se jogar no Inverno e no Verão ao mesmo tempo, dependendo da parte do campo em que se está durante a partida. No mínimo, pega-se uma constipação (ver Biologia).
Também se relaciona à Geografia, mas com conexões fortes com a Sociologia, o estudo das ocupações urbanas, das populações que frequentam o futebol ou que têm suas vidas modificadas com a criação de vários, enormes, caros e inúteis estádios para a realização de uma Copa do Mundo, com desapropriações, violência e geração de pobreza de muita gente – e de riqueza para uns poucos, assunto também de Política e Direito; portanto, fora do vestibular. Aqui também se estudam as grandes movimentações populacionais, como a da torcida do Corinthians ao Maracanã em 1976 – assunto igualmente de Teologia, que, você sabe, tampouco cai no vestibular.
Já a Filosofia tem sua maior lição no ensinamento de Sócrates (o da Grécia, que não dava passes de calcanhar mas batia um bolão), que sempre fica explícito, embora nunca dito, ao final das falas dos comentaristas esportivos: "Só sei que nada sei".
E o Português e a Literatura, não têm relação com o futebol?
Claro que têm.
Por exemplo, quando um centerforward, acelerando sobre os fertilizantes agrícolas, aparece atrás da zaga e bate no icosaedro truncado com o Efeito Magnus e atinge o ângulo adversário, gerando enorme descarga de dopamina no time e na torcida, e o juiz (depois de muitos minutos consultando o VAR) anula o goal, os torcedores exercitam a conjugação do verbo ir na segunda pessoa do singular do imperativo afirmativo e declamam uma famosa cantiga de maldizer, da Escola Trovadorista:
– "Ei, juiz, vai …"
_____________________________________
Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora Iluminuras
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/