Peteleco
POR LUIZ GUILHERME PIVA
Os jogadores eram os dedos. A bola, quase sempre uma moedinha, mas podia ser um botão de roupa, um rebite, miolo de pão, papel amassado, qualquer coisa.
As traves eram as alças da tampa.
Muito antes de o Maracanã ser o Estrelão, e mesmo antes de os grandes clássicos serem disputados na tábua em que os pregos fincados eram os craques, ali é que o futebol escrevia sua epopeia.
No chão de cimento revestido por vermelhão, a tampa, parte do próprio piso, pesada, medindo cerca de 60 cm X 40 cm, tinha as duas alças de ferro nos lados mais estreitos.
Eu nunca soube, nem perguntei, que tampa era aquela. Para que servia.
Sei que foram inúmeros campeonatos, milhões de gols, decisões terminadas em discussões e empurra-empurras, os sons das torcidas soprados de uma ou duas gargantas ecoando ao sol, misturando-se ao cheiro e à fumaça do almoço, vagando por sobre as bananeiras e caramboleiras e sumindo nos morros em que os bois atravessavam os tempos.
O chão quente. O gatilho do indicador. O tinido dos centavos no pé da trave. Umidade de lodo no canto do muro. Suor grudado no corpo. A história do futebol e da humanidade na magreleza dos dedos e nas unhas sujas.
Só recentemente descobri que era a tampa de uma caixa de gordura. Nunca vi levantarem-na, mas aprendi que o faziam às vezes – justamente pelas traves, aliás, pelas alças de ferro – para limpar a sujeira que se acumulava logo abaixo dela.
O que aumenta a autenticidade do futebol que ali se jogava: na superfície de um tipo de esgoto.
Que hoje, modernizado como todos os novos estádios, deve ser de PVC.
Sem a tampa com alças. Sem jogadores, sem gols, sem torcida, sem os sons subindo e perdendo-se nos morros.
Onde os bois, imóveis e eternos, permanecem.
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora Iluminuras
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/