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Blog do Juca Kfouri

Humilhações

Juca Kfouri

26/06/2019 19h03

POR LUIZ GUILHERME PIVA

O impedimento e a crase não foram feitos para humilhar ninguém.

Mas humilham.

Quanto à crase, há sites, corretores automáticos e manuais à disposição para tentar minimizar nossa vergonha antes que ela ocorra.

No caso do impedimento é diferente: há agora o VAR, que intervém só depois de tudo já ter acontecido e de termos cravado nossa opinião catedrática.

Mas há aproximações entre eles.

A crase não é um acento, e sim a junção de duas vogais (este é o significado da palavra crase) – por isso, aquele tracinho gêmeo ao acento grave se chama "sinal indicativo de crase". Ele mostra que ali o artigo "a" juntou-se à preposição "a" e eles seguiram seu caminho (uma crase sempre leva a algum lugar) felizes para sempre.

Ou seja: há ali um movimento, não uma situação; um filme, não um retrato. Um "a" correu e se juntou ao outro "a", ambos seguirão correndo juntos, e prontamente surge lá o sinal (como uma bandeirinha) erguido na diagonal a validar o lance, a abençoá-lo de forma que nem a morte os separe.

O impedimento, do mesmo modo, não é uma posição, mas um lance. Ele engloba o passe do jogador "a", a trajetória da bola e o toque na bola do jogador "b", que foi lançado.

A bandeirinha, também erguida na diagonal, como um acento grave – e às vezes é mesmo um evento de alta gravidade para o jogo –, semelhando a indicação da crase, sinaliza que houve ali a conexão do jogador "a" com o jogador "b", mas neste caso a invalida, desmanchando um casal que abria o portal da felicidade.

Só que a ocorrência do impedimento é muito pior de detectar. E o erguimento do acento grave, quer dizer, da bandeira, é muitas vezes uma incógnita.

E nem sempre foi assim conforme descrevi.

Antigamente, o bandeirinha assinalava sua ocorrência logo no momento do passe – as frustrações, alívios, agradecimentos e xingamentos se davam na origem do lance, antes da conexão – e o jogador "b" não chegava a alimentar qualquer ilusão quanto àquele enlace.

Muito tempo depois adotou-se o procedimento que narrei: a marcação passou a se dar quando o jogador "b" recebia a bola. E assim, com "b" cheio de esperanças, ficavam suspensas as respirações e adiada a alegria ou a agonia para o momento de conclusão da crase, aliás, do passe – caramba, do lance, vocês entenderam. Até que a bandeirinha erguida decretasse sua intransitividade.

Agora é ainda pior. O lance prossegue ainda mais, até sua conclusão, que pode resultar em gol, defesa do goleiro ou tiro de meta. Com isso, a conexão entre os jogadores "a" e "b" assume uma fugaz eternidade-enquanto-dura que transborda desgostos e contentamentos ao longo de segundos – como se fosse uma crase entre um artigo e várias preposições enfileiradas, tornando plural e variada sua transitividade. Não é por acaso que se ouvem os "aaaaas" que acompanham o lance antes do acionamento do VAR. São a onomatopeia do impedimento.

Aí é que entra o VAR: ele é quem, bacharelesco, douto, põe o pincenê, reflete, degusta, bochecha, fecha os olhos e proclama o erro da construção sintática, isto é, o impedimento.

E só então, oficialmente, o bandeirinha ergue, alto e diagonal, o sinal indicativo da desconexão.

E nós, humilhados, abandonamos nossa cátedra.

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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora Iluminuras

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/