Humilhações
POR LUIZ GUILHERME PIVA
O impedimento e a crase não foram feitos para humilhar ninguém.
Mas humilham.
Quanto à crase, há sites, corretores automáticos e manuais à disposição para tentar minimizar nossa vergonha antes que ela ocorra.
No caso do impedimento é diferente: há agora o VAR, que intervém só depois de tudo já ter acontecido e de termos cravado nossa opinião catedrática.
Mas há aproximações entre eles.
A crase não é um acento, e sim a junção de duas vogais (este é o significado da palavra crase) – por isso, aquele tracinho gêmeo ao acento grave se chama "sinal indicativo de crase". Ele mostra que ali o artigo "a" juntou-se à preposição "a" e eles seguiram seu caminho (uma crase sempre leva a algum lugar) felizes para sempre.
Ou seja: há ali um movimento, não uma situação; um filme, não um retrato. Um "a" correu e se juntou ao outro "a", ambos seguirão correndo juntos, e prontamente surge lá o sinal (como uma bandeirinha) erguido na diagonal a validar o lance, a abençoá-lo de forma que nem a morte os separe.
O impedimento, do mesmo modo, não é uma posição, mas um lance. Ele engloba o passe do jogador "a", a trajetória da bola e o toque na bola do jogador "b", que foi lançado.
A bandeirinha, também erguida na diagonal, como um acento grave – e às vezes é mesmo um evento de alta gravidade para o jogo –, semelhando a indicação da crase, sinaliza que houve ali a conexão do jogador "a" com o jogador "b", mas neste caso a invalida, desmanchando um casal que abria o portal da felicidade.
Só que a ocorrência do impedimento é muito pior de detectar. E o erguimento do acento grave, quer dizer, da bandeira, é muitas vezes uma incógnita.
E nem sempre foi assim conforme descrevi.
Antigamente, o bandeirinha assinalava sua ocorrência logo no momento do passe – as frustrações, alívios, agradecimentos e xingamentos se davam na origem do lance, antes da conexão – e o jogador "b" não chegava a alimentar qualquer ilusão quanto àquele enlace.
Muito tempo depois adotou-se o procedimento que narrei: a marcação passou a se dar quando o jogador "b" recebia a bola. E assim, com "b" cheio de esperanças, ficavam suspensas as respirações e adiada a alegria ou a agonia para o momento de conclusão da crase, aliás, do passe – caramba, do lance, vocês entenderam. Até que a bandeirinha erguida decretasse sua intransitividade.
Agora é ainda pior. O lance prossegue ainda mais, até sua conclusão, que pode resultar em gol, defesa do goleiro ou tiro de meta. Com isso, a conexão entre os jogadores "a" e "b" assume uma fugaz eternidade-enquanto-dura que transborda desgostos e contentamentos ao longo de segundos – como se fosse uma crase entre um artigo e várias preposições enfileiradas, tornando plural e variada sua transitividade. Não é por acaso que se ouvem os "aaaaas" que acompanham o lance antes do acionamento do VAR. São a onomatopeia do impedimento.
Aí é que entra o VAR: ele é quem, bacharelesco, douto, põe o pincenê, reflete, degusta, bochecha, fecha os olhos e proclama o erro da construção sintática, isto é, o impedimento.
E só então, oficialmente, o bandeirinha ergue, alto e diagonal, o sinal indicativo da desconexão.
E nós, humilhados, abandonamos nossa cátedra.
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora Iluminuras
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/