O desabafo e o apelo contra o racismo no Flamengo
POR RENATO GAMA*
Não estou aos prantos, porque existe uma linha tênue entre ser apaixonado por futebol e ser um fanático inconsequente.
Porém não nego que estou com alguma carga de emoção, dado o misto de ódio, empatia e indignação que estou sentindo.
Em meio às milhares de contradições , não entrarei no mérito, neste apelo, sobre o futebol ser o esporte que, no Brasil, nós, negras e negros, nos dá a oportunidade de sorrir, vivendo ou sobrevivendo numa sociedade que nos maltrata, exclui, invisibiliza (quando convém), vilipendia e mata de todas as formas possíveis.
O racismo não acabou com a Lei Áurea. Nem passou perto disso. Apenas se sofisticou. Segue vivo. E pleno.
O Flamengo, como o Corinthians, é conhecido como o time das massas.
Não por acaso todos os piores estereótipos associados a pessoas negras, são redistribuídos em ambas torcidas: "Marginais! Banguelas! Analfabetos! Animais! Burros!"
Substantivos e adjetivos como massas, popular, do povo, povão, são, na verdade, um verdadeiro eufemismo que camufla a predominância negra que configura aquele determinado espaço ou atividade.
Após a discussão do embranquecimento das arquibancadas via elitização, recomendo o documentário "Olhos Azuis", disponível gratuitamente no YouTube, que mostra como funciona a técnica de colocar exigências/condições/metas que, é sabido, dificilmente pessoas negras conseguirão atingir.
No caso das arquibancadas estão o preço e horário dos jogos.
Mas, principalmente o preço, dificultando, assim que tal pessoa, empresa ou política seja acusada de racista ou higienista.
E assim, como quem não quer nada, vêm outros 'pequenos' episódios, até que há cerca de um mês tivemos o veto à expressão "Festa na Favela" por um argumento torpe e explicitamente racista.
Quando parecia que não tinha como ficar pior, agora temos o diretor de relações externas do Flamengo, Cacau Cotta, fazendo deboche e ironizando o fato da palavra Mickey ter sido escrita corretamente por algum torcedor do clube numa pichação na Gávea.
A estúpida declaração fere toda a torcida rubro-negra, em sua maioria negra e rotulada como "burra", "cognitivamente inferior" e "analfabeta."
E o "Racismo Científico" se reifica.
Quem mais sofre com isso somos nós, negros com algum grau de consciência racial.
Porque na proporção em que escolhemos seguir um caminho de busca de auto-conhecimento e desvelamento da própria história das relações raciais no Brasil, nos tornamos mais sensíveis e mais expostos a ser atingidos por manifestações racistas sutis.
Como a de Cotta, que ultrapassa qualquer cota de idiotice e preconceito.
A declaração configura, a meu ver (e posso estar errado), um projeto em curso no Flamengo para branqueá-lo no sentido qualitativo e publicitário da palavra, promovendo um higienismo sistemático na instituição.
Infelizmente carecemos de jornalistas negros. Principalmente de consciência racial mínima para aprofundar situações tão corriqueiras de racismo no futebol, no esporte em geral e em todos os temas do nosso cotidiano.
Dada a sofisticação do racismo à brasileira; dada a dificuldade e complexidade de se dar nome aos bois quando o assunto é racismo e falar de "preto e branco", e dada a necessidade do nosso povo ter acesso à reflexão e análise, apelo: sejam os jornalistas mais conscientes as nossas vozes.
Porque as pessoas não têm ideia do quão fóbico e angustiante é ser alguém estruturalmente desprovido de qualquer respaldo institucionalizado para intervir em situações como essa, sem que você mesmo seja acusado de ser o racista, o intolerante.
Existe um projeto racista em curso no país que se desvela com esse lacaio na presidência e o governador do Rio de Janeiro.
Dada a demonstração de sensibilidade de alguns poucos jornalistas ao tema, peço: "Nos defendam."
Não tanto por mim, porque bem ou mal consigo me virar.
Mas muito mais por aquele pretinho e pretinha que deixam de pagar uma conta para comprar o ingresso para ter 90 minutos de orgasmo, sublimação e emoção, onde na maioria dos casos o futebol é o único meio de se desconectar dos assédios dos ambientes de trabalho, da violência policial cotidiana, dos problemas de transporte, moradia, saneamento e iluminação.
E tentar sorrir.
E se sentir importante em algo.
Ao menos uma vez.
*Renato Gama é estudante do 10° período de Psicologia na UERJ.
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/