Quaresma
POR LUIZ GUILHERME PIVA
Jogava muito, mas guardava a Quaresma com fervor radical: nada de bebida, de cigarro, de namoro, nem de carne. A bem dizer, na verdade quase não comia. Uma aguinha, uns pedacinhos de pão, chá, no máximo uma canja rala quando a fraqueza o abalava. E as hóstias nas missas diárias.
Por ele, não jogaria no período. Mas era justamente a época do torneio regional, que começava bem no aniversário da vila. Bairros e roças do entorno se mobilizavam, punham banda na abertura, pintavam as traves, corrigiam um pouco os formigueiros e murundus, compravam troféus e medalhas douradas, deixavam uniformes limpos e mobilizavam suas respectivas torcidas.
Era o craque. O artilheiro. O que levava as moças pra assistir aos jogos.
Fizeram um acerto em dinheiro, buscavam, levavam, ele aceitou.
Por três anos, não houve problema. O calendário do torneio e a Quaresma coincidiram só parcialmente. Em dois domingos, praticamente. Num torneio de doze domingos, deu pra levar. Ele chegou fraco, mas se garantiu na reta final com toquinhos e alguns bons passes – mesmo sem aguentar o jogo inteiro. Conquistaram o tricampeonato.
Mas naquele ano a preocupação se instalou: os sete últimos domingos do torneio eram a Quaresma, incluindo a final, no Domingo de Páscoa.
Nos cinco primeiros domingos, tudo normal. Largaram na frente, venceram todas, ele ponteou a artilharia. Incluindo o jogaço do domingo de Carnaval, em que ele foi da farra direto pro campo e arrebentou: fez quatro gols, e os companheiros, nos abraços, sentiam forte o bafo de álcool.
Mas aí veio o jejum e o debilitamento. O primeiro jogo ainda deu pra levar, até com um golzinho dele, de pênalti, mas o time perdeu. No segundo, só meio tempo em campo, uns passes e mais nada. Derrota.
No terceiro, goleada. A classificação entrou em risco, a torcida, em pânico, os colegas, em desespero.
Ele cada vez mais fraco. Em geral, sem torneio, ele ficaria deitado o dia todo ("em penitência", dizia), sairia pra missa amparado pelos irmãos e voltaria pra cama. Mas agora tinha torneio, tinha jogo aos domingos, o time precisava dele. Faltavam quatro jogos e o quadro ("tá uma desgraceira que faz gosto", diagnosticou o farmacêutico que foi examiná-lo em casa) era de eliminação iminente.
Falaram com a mãe, com a madrinha, com a família inteira, levaram as moças da torcida pra implorar que ele comesse, que se recuperasse. "Se quiserem que eu jogue, eu jogo", balbuciou, "mas meu sacrifício eu levo até o final". E tossiu.
O dono do time, que era meio ateu, quis sacudi-lo na cama, chegou a pegá-lo pelos ombros, mas o pessoal o segurou enquanto ele berrava: "Você acha que vai jogar bola no céu, acha?". Saiu chutando a porta, mas deu pra ouvir o artilheiro assoprar: "Este é um período de arrependimentos: refleti, arrependei e mudai" – uma conjugação que a turma estranhou, mas que ele decorara nas tantas e tantas missas a que assistia.
Nono jogo. Buscaram-no, só que ele era um trapo, um fiapo, um saco vazio. Chegou a vestir a camisa e a tentar amarrar a chuteira. Mas desmaiou. O dono do time partiu pra cima pra, sabe-se lá, enchê-lo de tapas, tamanha a raiva. Seguraram-no. Não deu outra: perderam de novo.
Por sorte, o rival empatado em pontos perdeu também. Ficou tudo nivelado, mas, com três rodadas pela frente, com o craque naquele estado ("Na Sexta-Feira Santa eu vou crucificá-lo", berrava pela cidade o dono do time), a perspectiva era muito ruim ("Se não morrer, penduro ele no poste no Sábado de Aleluia e taco fogo"). E completava: "Quero ver ressuscitar no domingo, quero ver!".
Foram ao padre local – menos o dono, que não entrava em igreja. Explicaram tudo. O padre disse que nada poderia fazer. Era a fé, tinha que ser respeitada. "Deus admira seus fiéis mais ardorosos."
Mas o sacristão ouviu tudo. Acompanhava o drama do time, mesmo sem apreciar futebol. Pediu licença ao padre e mostrou no celular a pesquisa que fizera: "a Quaresma vai da Quarta-Feira de Cinzas até a Quinta-feira Santa".
"Então ele pode começar a comer na sexta, se recuperar e jogar no Domingo de Páscoa?", perguntaram.
O padre leu e assentiu:
"É verdade, ele pode jogar. Mas a tradição que se consolidou estende a Quaresma até o Sábado de Aleluia. Só na Páscoa é que se deve abandonar a penitência."
"Não dá, ele vai estar muito fraco ainda." "E também já seria tarde", lamentaram. "Na última rodada estaremos sem chances."
O sacristão:
"Mas vejam – com sua licença, padre –, se contarmos os dias, dá mais de quarenta na Quaresma!".
Contaram: quarenta e sete!
O sacristão: "Sabem por quê?".
O padre: "É verdade!". Lembrou-se dos ensinamentos e disse antes do sacristão:
"Os domingos não requerem a penitência porque eles simbolicamente celebram a Ressureição!"
E vibrou, porque, diferentemente do sacristão, era torcedor e acompanhava as partidas do time, além de fã do craque penitente.
Fizeram as contas: exatamente os sete domingos a mais! Se ele se alimentasse normalmente nos dias de jogos, já bastaria. O tetracampeonato passou a ser factível novamente! E todos os campeonatos dos anos seguintes!
Correram à casa dele, o padre e o sacristão junto, e contaram a brecha eclesiástica. Ele duvidou, mas a bênção do padre e os esguichos de água benta do sacristão o convenceram.
"Topo!", murmurou. "Domingo estarei lá com café da manhã e almoço reforçados!" E tossiu.
O rastilho de euforia correu a cidade, passou vielas, subiu morros, fez poeira nas roças, cruzou calçadas, balançou roupas estendidas, amontoou-se nos jardins e parecia a ponto de explodir em fogos brilhantes no céu – mas deu de cara com o dono do time sentado no alpendre.
E ali parou.
"Não joga!"
Bocas em O, braços em W, sobrancelhas em til!
"Não joga!"
"Mas vamos perder o campeonato!"
"Vamos. É isso o que eu quero!"
Interrogações encheram o ar como balões.
"É a nossa penitência. Refleti, me arrependi e mudei: a derrota vai salvar as almas de todos nós!"
Levantou-se e entrou.
Alguns juram que o viram fazer o sinal da cruz. Outros garantem que ele sorria, sarcástico.
Logo, voltou à varanda e disse: "Refleti, arrependei e mudai também todos vós".
Todos de ombros baixos, em silêncio, contritos.
E completou: "E digam ao nosso craque que vá para o quinto dos infernos!"
Acabaram-se ali o tetracampeonato, o time e os torneios.
E então saíram todos, em fúria, com o padre e o sacristão à frente, para a casa do craque.
Iam tirar satisfação a qualquer preço.
______________________________________________
Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora Iluminuras.
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/