O VAR e o lance interpretativo
POR ANDRÉ KFOURI*
No consultório de um gastroenterologista, o paciente fala sobre a dor que o incomoda:
– Bom dia, doutor. É por aqui (leva a mão ao lado direito do abdome), e começou ontem. Uma dor bem forte. Estou preocupado porque pode ser algo sério, por isso marquei a consulta o quanto antes.
– Claro, claro. Mas não fique ansioso, vamos descobrir o que é. Eu vou te fazer algumas perguntas para avaliar seu estado de saúde, vou te examinar aqui no consultório e provavelmente também vou fazer um pedido de exame.
– Que exame, doutor?
– Uma endoscopia, um exame de imagem. Esse é o protocolo: o exame clínico e o exame de imagem. Assim temos maiores possibilidades de fazer um diagnóstico preciso e indicar um tratamento, se for necessário.
– Mas é necessário mesmo, doutor? Não podemos resolver logo aqui?
– Veja, o exame clínico nos dá algumas respostas. Mas a endoscopia, que é a introdução de um equipamento com uma microcâmera no seu tubo digestivo, nos permite ver tudo o que é necessário para montar um diagnóstico acertado. A combinação dos dois exames é ideal para saber que curso seguir.
– Mas doutor… eu sou um pouco tradicionalista nesse aspecto. Posso ou não posso confiar na sua capacidade de determinar o que tenho? Porque, ao longo dos tempos, as pessoas sempre tiveram esses problemas e não podiam contar com esses exames de imagem. É para isso que médicos servem, o senhor não acha?
– Médicos servem para tratar de pessoas com todos os recursos que estão disponíveis. Quando exames de imagem não existiam, não podíamos ir além do exame clínico, e problemas graves não eram detectados até que fosse tarde demais. A evolução da tecnologia colabora para a nossa atividade, com mecanismos que nos dão mais informações e nos ajudam a tomar decisões. Eu seria um péssimo médico se te mandasse para casa depois de te examinar, sem investigar essa dor de todas as formas que hoje nos auxiliam. Não posso ignorar essa possibilidade.
– Mas isso vai atrapalhar a dinâmica da minha vida. Vou ter de marcar o exame, gastar algumas horas, e esperar dias para ter o resultado… Eu prefiro que o senhor faça o seu melhor aqui no consultório, e aí sigo minha vida.
– O resultado sai no mesmo dia, e existem diversos locais onde o senhor pode realizar o exame. Se for uma úlcera, ou até um tumor, nós só poderemos saber com certeza com a imagem. Eu recomendo insistentemente que você faça o exame.
– Mas quem me garante que o exame vai salvar minha vida, doutor? Se for algo grave, e o senhor não detectar aqui, talvez não haja mais nada a fazer, certo?
– Não é isso. O propósito do exame não é salvar sua vida, mas oferecer a maior quantidade de elementos sobre a sua condição, para aumentar as possibilidades de um diagnóstico correto. É uma questão de informação.
– E os falsos positivos? Não existem? Minha sogra teve um problemão por causa disso, doutor. Fez um monte de outros exames, tomou remédios errados por dois meses, porque um médico avaliou mal uma ressonância magnética. Valeu a pena? Claro que não! Por isso digo que precisamos ter bons médicos, que saibam fazer bem seu trabalho. Os exames não vão resolver todos os problemas.
– Desculpe, o senhor está um pouco confuso. Que situação te deixaria mais confortável em relação a essa dor na barriga: apenas um exame clínico e a receita de uma medicação para dor, ou, além disso, um exame de imagem que mostra tudo o que é necessário saber para determinar o seu quadro?
– Mas o senhor garante que o exame vai solucionar o problema? Não, certo? Eu posso sair daqui, agendar o exame, perder metade do dia, e mesmo assim continuar sentindo dores e precisar ser operado…
– É exatamente por isso. Só com o exame eu poderei te dizer qual é a origem dessa dor.
– E tem outra coisa: em várias regiões do Brasil e do mundo as pessoas não têm acesso a endoscopias, e continuam vivendo do mesmo jeito. Esse é o valor da medicina; poder tratar a todos com a experiência dos profissionais de saúde, que, esses sim, estão em todos os lugares.
– Esse raciocínio não faz sentido. O que temos de fazer é trabalhar para que esses avanços cheguem a cada vez mais pessoas, ao invés de ignorá-los. Não é uma conduta inteligente deixar de utilizar recursos tecnológicos disponíveis, e confiáveis, só porque eles não estão ao alcance de todos…
– Espera aí, o senhor está dizendo que não sou inteligente? O que é isso? Acho melhor eu ir embora… médicos que se prezam não usam exames como muleta. Se o senhor fosse bom, mesmo, saberia me diagnosticar agora. Se for para fazer exames a toda hora, não precisamos mais de médicos. O exame diz o que está acontecendo e pronto. Assim é fácil.
– Não, exames não são feitos a toda hora. Mas em todos os casos em que colaboram de maneira determinante para esclarecer quadros. E exames não dizem "o que está acontecendo". Quem diz isso é o médico, com base em todas as informações que tem. É assim que se faz um diagnóstico.
– Desculpe doutor, não me convence. Eu sou da época em que o médico dizia o que estava acontecendo e a gente confiava. Se estivesse errado, paciência. Obrigado.
– Lamento. Passar bem.
*Publicado originalmente no blog do jornalista, no "Lance!".
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