O evangelho do futebol segundo Lucas
Por MARCELO TORRES*
O futebol não é só um jogo, nem é só uma brincadeira, nem é apenas uma coisa lúdica de crianças de todas as idades. E o futebol também não é só um negócio, um mero negócio, esse gigantesco negócio de bilhões de reais (quem sabe até trilhões) no planeta.
O futebol é mais que isso. O futebol é uma coisa sagrada, pelo menos para milhões de fanáticos pelo mundo — e talvez por isso mesmo tenha virado esse negócio que move e remove montanhas de dinheiro.
Vejamos o exemplo do homem comum que é um torcedor-raiz: ele pode mudar de um tudo na vida — muda de nome, muda de endereço, de cidade, de país, de candidato, de partido, de ideologia, de profissão, de sexo, de religião — a única coisa que ele não muda é o clube que colocou no coração.
E já que hoje, para os que creem, é a sexta-feira-santa, também chamada sexta-feira-da-paixão, façamos, pois, uma breve ligação entre futebol e religião, evocando Lucas, esse nome que é tão comum em dezenas ou centenas de atletas e milhares de torcedores de futebol.
Lucas, o evangelista, não aquele jogador revelado pelo São Paulo e que hoje joga no Nantes, da França, mas o da bíblia, aquele que foi uma espécie de biógrafo de Jesus Cristo. Sua obra famosa, o Evangelho Segundo Lucas, é o terceiro dos quatro livros canônicos presentes no Novo Testamento.
O livro possui 24 capítulos, 24 parábolas e 21 supostos milagres. Nele, Lucas conta a vida de Jesus, do nascimento à ascensão, passando pela infância, batismo, tentação, parábolas, a última ceia, a prisão, a morte na cruz e a ressurreição, segundo a tradição cristã.
É importante dizer, ainda sobre Lucas, que, de acordo com textos religiosos, ele foi médico e pintor e dos melhores, tendo sido o primeiro a retratar Maria, Pedro e Paulo. É o padroeiro não só dos médicos, mas também dos artistas, dos pintores e dos escultores.
Voltando à bíblia, obviamente não existe, nem em Lucas nem no livro sagrado, qualquer coisa sobre futebol, mas, a título de curiosidade, podemos lembrar da parábola do argueiro e da trave.
É uma passagem do Novo Testamento, presente em Mateus, no Sermão da Montanha, e em Lucas, no Sermão da Planície. Convém, contudo, não confundir "O argueiro e a trave" com "O arqueiro e trave".
Argueiro é um cisco, um cisco que incomoda, que faz arder; e trave é um pedaço de madeira grossa (como outrora as balizas de futebol).
Jesus, segundo Lucas, teria feito uma pregação usando o argueiro e a trave: "E por que atentas tu no argueiro que está no olho de teu irmão, e não reparas na trave que está no teu próprio olho?".
No Evangelho de Lucas encontram-se muitas histórias que se tornaram populares, ao longo dos séculos e séculos, como as parábolas do filho pródigo e do bom samaritano.
E um dos principais aspectos do livro do evangelista é o olhar especial para os enfermos, os pobres, os aflitos, os marginalizados,— para as minorias, enfim.
Pois bem, no último sábado o Peñarol, tradicional clube de futebol do Uruguai, foi até Colônia do Sacramento jogar contra a equipe local, o Plaza Colônia.
A cidade é a terra natal do arqueiro do Peñarol, Kevin Dawson, e o Plaza Colônia foi o time que o revelou para o mundo do futebol.
Quando ainda estava nas divisões de base do clube, Kevin Dawson procurava conciliar a atividade esportiva com a profissão de pintor, que era seu ganha-pão.
Em 2015 ele ajudou o modesto Plaza Colônia a subir para a primeira divisão uruguaia e no ano seguinte, numa surpresa incrível, um "milagre", foi campeão do Torneio Clausura.
Logo-logo foi contratado pelo Peñarol, com o qual foi campeão nacional e escolhido não apenas o melhor goleiro, mas o melhor jogador do campeonato.
Pois no último sábado o goleiro da casa fez um "milagre". Não no jogo em si, que acabou em vitória por 1 a 0 do seu time contra o ex-clube — e em toda a partida ele foi aplaudido pelos conterrâneos.
A cena mais bonita de se ver no espetáculo aconteceu logo depois que a partida acabou e um garoto com Síndrome de Down entrou em campo, pegou a bola e foi até seu ídolo no futebol:
— Posso bater um pênalti em você? — pediu o garoto.
— Mas é claro! — disse Kevin, já abraçando o "desafiante" e caminhando até o gol.
A televisão filmou a cena repentina, improvisada. Os dois caminhando abraçados, unidos pela bola. Até o árbitro da partida, vendo o que se passava, correu para também entrar na cena. E entrou e apitou, autorizando o chute do garoto. E este chutou firme e forte no canto direito de Kevin, que saltou feito um gato (como se fosse Andrada querendo evitar o milésimo gol de Pelé), mas não alcançou a bola, que beijou firme as redes.
A torcida vibrou como se fosse um título mundial do Plaza Colônia. E o garoto correu, com os braços abertos para o alto e para os torcedores. Foi um desses momentos mágicos, sublimes, encantadores do futebol. E vocês sabem qual era o nome do garoto com Síndrome de Down autor do gol?
Lucas, era o nome dele.
Aliás, para sermos justos, temos que reconhecer: o gol, aquele golaço, aquele gol de anjo, aquele verdadeiro gol de placa tem dois autores: Kevin e Lucas.
Veja a cena AQUI.
*Marcelo Torres é jornalista, baiano, torcedor do Vitória, mora em Brasília e em julho lançará o livro "Os nomes da rosa" (crônicas sobre futebol e literatura).
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/