E se... 4. Heleno
Por ROBERTO VIEIRA
A Boate do Hotel Vogue é famosa por seu strogonoff e pelas suas beldades. Não necessariamente nessa ordem. Silvio Caldas é a voz da vez e Heleno não desgruda os olhos do palco junto com os amigos Ermelindo Matarazzo e Mariozinho Oliveira. Aliás, desgruda apenas para olhar as curvas daquela loira vinda da Europa arrasada pela guerra.
A noite é uma criança e a boate soa muito mais agradável que o sul-americano de Buenos Aires. O único desgosto de Heleno era que a Copa do Mundo marcada para o Brasil não seria realizada logo agora como deseja a FIFA. A seleção seria imbatível com ele, Zizinho, Ademir, Tesourinha e, quem sabe, Leônidas.
O velhinho da bicicleta imagina jogar mais que Heleno.
Leônidas que só chama Heleno de De Freitas.
Mas Heleno só se perturba quando vê a possibilidade de não ser titular. Queria jogar e ganhar sempre. Podia tranquilamente dar um lençol em Domingos da Guia e receber de volta outro lençol com o cavalheirismo dos gênios. Desde que fosse parte do seu espetáculo.
A loira piscou de volta.
Heleno se lança pela meia esquerda da boate para trocar passes com a menina que veio de longe com seu sotaque indefinido.
Otávio iria aplaudir.
O Cadillac amarelo espera por seu dono e sua nova conquista. O novo casal sai pela noite carioca e se perde em carinhos e amassos na madrugada do Distrito Federal.
Isabelle podia ser jovem, mas já tinha vivido e sobrevivido a mil vidas. Pelo seu corpo de um branco virginal dezenas de corpos haviam encontrado prazer. Mas Isabelle não conhecia esta palavra. Sua beleza, seus beijos e seu corpo tinham apenas uma finalidade. Resistir ao drama que matara suas irmãs e seus pais. Oferecer seu corpo aos sonhos masculinos era apenas a única forma que Isabelle ainda concebia para não se entregar ao seu próprio final.
Heleno não vê nada disso. Para ele, o corpo de Isabelle é indiferente como o corpo das inúmeras mulheres que levara para a cama. Um gol a mais na sua longa lista de artilharia. Heleno trocaria tranquilamente o deleite com a moça por algumas conquistas pelo seu amado Botafogo.
Quando se prepara para possuí-la, no entanto, uma lágrima da jovem interrompe o atacante. O choro compulsivo deixa Heleno atordoado e o craque pela primeira vez desiste de uma conquista.
Isabelle parte para a Argentina pela manhã, intocada. Sem nada dizer a Heleno.
O treino no dia seguinte é conturbado. Heleno deseja a perfeição como a das curvas de Isabelle, porém os passes de Tovar eram toscos demais naquela manhã para compensar a noite perdida.
Era muito burro de ter desperdiçado aquelas curvas!
Heleno não sabia, mas dera um drible inesperado no destino.
O Treponema pallidum foi descoberto em 1905. No início, ninguém acreditou na descoberta, mas rapidamente as pesquisas de Schaudinn e Hoffmann foram confirmadas.
Schaudinn faleceu pouco depois, em 1906.
Hoffmann deu continuidade ao trabalho do colega. No período nazista, ele viveu fora da Alemanha para onde regressou após a II Grande Guerra.
Ravensbrück era território feminino. Abortos forçados, esterilização e prostituição. Treponemas injetados na medula espinhal das prisioneiras. Isabelle sobrevivera a Ravensbrück com sua beleza. O Rio de Janeiro lembrava algumas vezes a costa do mar Báltico. Em sonhos e pesadelos.
Juntamente com as lágrimas, Isabelle também trazia consigo o Treponema.
Durante toda sua longa existência de centroavante da seleção, Heleno pensou na menina prussiana. Herói de duas Copas, maior ídolo da história do Botafogo, cada tento marcado era um tento para a saudade que sentia de Isabelle.
Porque, para Heleno, nunca houve uma mulher como Isabelle…
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