E se... 16. Figueroa
Por ROBERTO VIEIRA
"El viento de la noche gira en el cielo y canta…"
Pablo Neruda
Recife, 5 de setembro dei 1973. Elías Ricardo Figueroa senta no saguão do hotel e lê as manchetes dos jornais. Quinhentos atentados no Chile apenas no mês de agosto. O vento da noite gira, mas o céu está silencioso. Ele larga os jornais e se debruça sobre aquele velho livro de poesias. Figueroa não consegue enxergar beleza nas vinte canções de amor. Ele agora é apenas uma canção desesperada.
O garoto Falcão passa por Figueroa. Vai jogar com Paulo César no meio-de-campo. No lugar de Tovar. Figueroa pensa em conversar com ele, mas o menino acha que já sabe de tudo. E por vezes parece que sabe mesmo.
Câncer, Ricardo. Próstata. Um mês talvez, talvez mais, talvez menos. Albertina passeia pelos corredores de mãos dadas com a amargura.
"Confesso que vivi, Doutor"
Mas a morte, será a morte lenta e calma como a voz de Albertina? Alguma notícia de Salvador Allende? Noite de chuva. Calor. Um cruzamento de Valdomiro encontra Escurinho desmarcado: Internacional 1 x 0. A primeira vitória do Internacional naquele campeonato sem fim. Enquanto isso as mulheres brigam pelas ruas do Chile.
Falta comida. Falta gasolina. Falta Figueroa. No noticiário, o General Pinochet, amigo de Salvador Allende, garante que tudo vai se resolver. Apolítico. Pinochet era apolítico. Claudiomiro se machucou contra o Paissandu. Resta Escurinho. Pouco importa, a defesa não toma gol mesmo. Apolítica.
Valparaíso, 11 de setembro. Figueroa ainda lembra a cidade onde nasceu. Como estará Valparaíso? Será que a cidade enlouqueceu novamente?
A roupa do Internacional se perde nos aeroportos deste país imenso. Quente. Sem fim. O Colorado chega em Maceió para enfrentar o CRB.
Valparaíso, 11 de setembro. A marinha chilena ocupa Valparaíso. Figueroa ainda se recorda da cidade onde nasceu. Mas de quem é esse ultimato? De Augusto Pinochet? Allende imagina que Pinochet está preso. Novo cruzamento na área e gol de Borjão aos 40': 1×0. O massagista do time alagoano agride o juiz da partida. Como um carabinero. A defesa não toma gol. Apolítica. O canceriano Ricardo Eliezer Neftalí Reyes Basoalto, mais conhecido como Pablo Neruda, sente uma dor no coração. Pensa escrever sua última poesia, mas a defesa é apolítica, inexpugnável. La Moneda. As imagens da TV mostram os aviões bombardeando o La Moneda. Os jornais anunciam que Allende se suicidou. Primavera. O Estádio Nacional do Chile se inunda com prisioneiros políticos. Rituais macabros de tortura. Fuzilamentos. O olhar perdido de Neruda alcança o Estádio Nacional. Um ano antes ele foi homenageado no estádio pelo povo do Chile. Como imaginar que aquele imenso tecido verde iria se manchar com sangue?
Neruda se recorda de Figueroa. O imenso jogador recita seus poemas de cor.
Figueroa relê Neruda.
O maior zagueiro do mundo sabe que está numa encruzilhada, mas resta uma saída. O Internacional não vai liberá-lo para jogar pela seleção chilena. A URSS rompeu relações diplomáticas com o Chile. Ele não será chamado para cumprir seu dever pela pátria. O que Pablo pensaria daquilo? Um dos seus leitores trocando apertos de mão com aquele homem de bigode. Apolítico.
Uma foto chega. Soldados carregam o corpo de Allende envolvido por uma manta. Apenas os familiares lhe prestam o último adeus.
Pinochet liga para Médici.
'Quero Figueroa! Não gosto de futebol, mas o Chile irá enfrentar os nossos inimigos em Moscou. O que você faria se lhe negassem Pelé para jogar na Copa de 70?'
Os soviéticos acham que será fácil ganhar do Chile. Principalmente sem Ele. Dom Elías.
23 de setembro. A CBD transfere a partida Internacional e América-MG para 10 de outubro. Operação Condor em campo.
"Dom Elías, suas passagens. Você parte hoje mesmo para Moscou"
Pablo Neruda é adormecido para sempre na Clínica Santa Maria em Santiago.
25 de setembro. Outono em Moscou. Sob um sol esplendoroso o time chileno treina. Mas onde será o segundo jogo? No Estádio Nacional a grama agora é roja. Chega ao hotel em Moscou a notícia da morte de Pablo Neruda. Figueroa observa o vento da noite.
26 de setembro. URSS e Chile entram em campo. Um minuto de silêncio. 0x0. Figueroa em campo. O brasileiro Armando Marques é o árbitro. Os soviéticos não conseguem marcar. Pinochet sorri. No hotel, Figueroa tenta abrir o livro de poesias, mas as páginas estão velhas, fragmentadas.
Alguns dias depois, a FIFA faz uma visita ao presídio do Estádio Nacional e verifica que não existem prisioneiros por lá. O jogo Chile x URSS é confirmado para novembro. A URSS não comparece. Um pouco por política. Um pouco por malandragem. Os jogadores chilenos batem o centro sozinhos com o juiz na ópera bufa e fazem um gol: 1×0. O Chile não sofre gols. Na plateia, Pinochet aplaude. Milhares de corpos nas valas comuns se calam. Desaparecidos.
Os carabineros passaram noites e noites sem dormir.
Fuzilando.
Sepultando.
Como se marcassem um gol nas Eliminatórias…
NOTA DO BLOG: Roberto Vieira, o autor, e gozador, adverte: este, enfim, não é um texto de ficção. Por mais assombroso que pareça. E foi.
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/