Barragem
POR LUIZ GUILHERME PIVA
O pessoal jogava bola todo sábado, adultos e meninos juntos, e começou a reparar.
Com a seca, a água foi baixando.
Era sol e sol, nem um fiapo de chuva havia meses.
Só poeira. E o lago formado pela barragem baixando.
Até que apareceu a cruz da torre da igreja. Depois, um pedaço da torre.
Cinquenta anos já. A construção da usina exigira a inundação e todos se mudaram para a parte mais alta, perto dali. Do campo dava para ver tudo.
Em duas ou três semanas já se mostrava metade da porta, e depois pedaços de teto de algumas casas, e até o que pareciam ser uns postes.
Mesmo com a água barrenta julgavam ver mergulhada a silhueta da cidade, das casas e das ruas.
"Ali era o Bar do Tonho!" "Ali, o colégio!" "Tá vendo depois do casarão? Mais pra frente era o cemitério."
Eram os dedos e bocas dos adultos. Os meninos olhavam para eles e para o lago, mas só viam o que estava à tona, e não eram mais do que uns pedaços da igreja e outras ruínas.
Mas os mais velhos percorriam cada pedaço da antiga cidade como se de fato a pisassem, ou como se nadassem sob a água rasa revendo janelas, cores, pessoas, certezas, a arquitetura alagada.
Desceram até a beirada, os meninos atrás.
"O seu Alcides!" "Olha o cachorro do Dito!"
Seguiam agora juntos, na mesma coreografia, os dedos e os olhos.
"Vira à esquerda aqui." "Agora; não, mais adiante." "Isso, estamos no caminho certo."
"Ei, lembram quando o velho da bala de coco morreu bem aqui? Sentado na cadeira na frente da casa dele?" "Essa ali não é a dona Liana, que fugiu com o protético?" "Caramba, tudo aqui, igualzinho!"
Os meninos se olhavam, olhavam os adultos, olhavam o lago. Não entendiam.
"Parem, parem!" "Meu Deus!" "Olha lá!".
Aturdidos, maravilhados, encaixando as falas como num jogral.
O céu estilhaçava de tão azul, a água grossa, mosquitos, fantasmas de nuvens esfarrapadas.
Parados, braços e dedos em riste. Um fez a continência e os olhos chineses para enxergar ainda mais.
"É o campinho!" "As traves!" "O mato em volta, lembram?" "Como pode estar tudo do mesmo jeito?"
Adivinhavam os contornos do cenário como se o lago escuro, espesso, fosse um aquário vívido.
"Foi naquele gol de baixo o pênalti." "Eu era o goleiro." "Eu bati no canto e você pegou."
Silêncio.
"E ali do outro lado metemos a goleada no time do Bento, lembram?" "Zero a zero no primeiro tempo, no segundo enfiamos seis!" "Três foram meus".
Silêncio.
Começaram a andar em direção ao lago.
Os meninos gritaram.
Mas era como se um flautista os hipnotizasse.
Começaram a adentrar a água. Um dos meninos veio puxar a camisa do pai mas não conseguiu.
A água lhes tomava o peito.
Os meninos choravam.
O dia, laranja e vermelho, afundava nos morros.
Só as nucas.
Escuro. Vento. Grasnidos longínquos.
Os meninos desesperados.
Agora só a água.
As lágrimas empelotando a poeira dos rostos dos meninos.
Um deles disse ter ouvido um grito de gol regurgitado e oco. Olharam e viram umas borbulhas.
Silêncio.
E nunca mais.
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" – ambos pela Editora Iluminuras
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/