Topo

Blog do Juca Kfouri

Herzog e Modric

Juca Kfouri

31/08/2018 14h00

Por ROBERTO VIEIRA

Vlado Herzog nasceu no dia 27 de junho de 1937 em Osijek. Luka Modric veio ao mundo no dia 9 de setembro de 1985, em Zadar. Quando Vlado e Luka nasceram, ambas as localidades eram parte da antiga Iugoslávia. Atualmente pertencem a Croácia.

Luka não larga a bola na casa do avô nas montanhas de Velebit. Avô que também se chama Luka. Primogênito, alheio ao perigo, o inocente Luka bate bola mesmo diante das tropas paramilitares que aterrorizam a região, até o dia em que as tropas alvejam seu avô. O menino vê o corpo no chão, imóvel. Os pais decidem fugir e a bola se torna a única alegria do menino. A casa do avô é incendiada. A família irá viver como refugiada no Hotel Kolovare por sete anos.

Gritos acordam o pequeno Vlado. Magro e imerso em febre, o menino descobre os homens maus invadindo a casa de seus avós. O pai diz a Vlado que está tudo bem. Sob a mira dos alemães, Vlado sai carregado pela mãe na madrugada de estrelas frias. Judeus e sérvios são manchas torturadas. O governo croata e fascista dá as cartas no país. Diante do perigo, os pais de Vlado decidem fugir, primeiro para a Itália e, depois, para o distante Brasil, após o fim da II Guerra.

A voz de Elis ainda não fala de equilibristas. A única Pimentinha no recinto é aquela caixa de madeira desferindo choques e mais choques, enquanto as perguntas se repetem na escuridão. O corpo tenta em vão se equilibrar como Carlitos, porém as lembranças de criança começam a se confundir com as lembranças de Clarices.

Luka se benze. A comida é pouca, o corpo frágil, os treinamentos ocorrem no intervalo dos bombardeios. O menino é feliz com sua bola, imaginando-se um Ronaldo brasileiro, disparando entre as linhas inimigas de uma favela carioca. Alguém disse a Luka que as favelas cariocas são imensos Balcãs sem fim, onde multidões de exilados da sociedade jogam bola. A tarde cai como um viaduto. A família Modric vai dormir sem saber como será o dia seguinte. Dia de paz ou dia de luto.

O negócio do menino Vlado são os livros, no entanto, chegando ao Brasil no final de 1946, ele se encanta com a equipe do Palmeiras no campeonato paulista de 1947. O time treinado por Osvaldo Brandão é campeão estadual com uma rodada de antecedência vencendo ao Santos por 2×1 na Vila Belmiro, alinhando Oberdan Cattani; Caieira e Turcão; Zezé Procópio, Túlio e Waldemar Fiúme; Lula, Arturzinho, Osvaldinho, Lima e Canhotinho.  A campanha com 17 vitórias, 2 empates e apenas 1 derrota é o contraponto do país que se tornará seu lar diante da batalha no exame de admissão. Vlado se torna um palmeirense pelo futebol apresentado em campo, assim como pelas lembranças da boa acolhida que sua família teve na passagem pelo Vêneto.

Vlado ama a ópera. Luka ama as músicas croatas. Um belo dia, ambos decidem partir para a Inglaterra em busca de novos ares. Vlado chega na BBC de Londres em 1965 com uma ticket to ride e a discreta ajuda dos amigos que desejam ver o rapaz talentoso distante da repressão da ditadura brasileira. Luka é objeto de disputa entre Barcelona, Arsenal e Chelsea, mas termina por assinar com o Tottenham Hotspur em 2008.

Os filhos de Vlado nascem na Inglaterra, Ivo em 1966 e André em 1968, ano do retorno ao Brasil. O primeiro filho de Luka, Ivano, nasce durante sua temporada inglesa, em 2010. As filhas Ema e Sofia chegam quando Luka já atua no Real Madrid. A visão dos filhos transforma as noites de pesadelo em sonho. Eles, com certeza, terão um mundo melhor para viver.

Vlado cai em si. Os homens maus da infância estão de volta. Querem saber o que todos já sabem. O país tropical abençoado por Deus se torna uma armadilha em si mesmo. Como é mesmo o nome daquele escritor? Stefan sabia disso tudo e Vlado não acreditou nas palavras de Stefan. Sob o capuz, Vlado imagina que seu pai irá dizer que está tudo bem, mas seu pai já disse adeus. Zora chora o filho desaparecido antes mesmo da sentença final. As páginas dos jornais do sábado choram por Franco e se preocupam com São Paulo e Portuguesa no Campeonato Nacional.

Os jornais se calam sobre a legião de presos.

O tempo é o único a escrever que a vida sempre vence, mesmo quando sai de campo derrotada.

Luka veste a camisa vermelha e branca quadriculada. A sua pátria viveu para ser mãe gentil. Os anos de atrocidade e violência ficam para trás nos gols de Suker e no rosto indecifrável de Luka.

Luka também se veste de branco. Ninguém lembra de Franco no Real Madrid. A Espanha é um Brasil amplo, geral e irrestrito, com relances de inconformismo catalão e basco. Luka não conhece Vlado. O Brasil de Luka são Casimiro e Marcelo. O menino vence a realidade no país do passado.

Longe dali, por um momento, Vlado desaparece como desaparece o país do futuro. A terra de liberdade e esperança se transformando em sepultura. O corpo amarrado na grade, pés no chão e pernas curvadas, entretanto, ganha vida no culto ecumênico da Sé.

O menino que fugiu da guerra para encontrar seu destino em outra guerra não sabe. A imagem de seu calvário será o início do fim do regime militar. O menino vence a realidade na sua aparente fragilidade diante dos algozes.

Porquê Vlado e Luka são cada criança que sofre nesse mundo de maldade, torturas, fome e violência. Vlado e Luka são milhões.

Poucas dessas crianças podem gritar pela conquista de um título enquanto choram pela lembrança do avô. Muitas mergulham nessa insustentável leveza de serem apenas crianças em um mundo repleto de ruas Tutoia…

NOTA DO AUTOR: O texto agradece aos livros DOSSIÊ HERZOG de Fernando Pacheco Jordão, MEU QUERIDO VLADO de Paulo Markun, LUKA MODRIC, EL HIJO DE LA GUERRA de Vicente Azpitarte e José Manuel Puertas e A DITADURA ENCURRALADA – O SACERDOTE E O FEITICEIRO, de Elio Gaspari.

Imensamente grato também a IVO HERZOG pela gentileza ao esclarecer que Vladimir Herzog era palmeirense. 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/