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Blog do Juca Kfouri

Homenagem à mãe Ginga

Juca Kfouri

14/05/2018 14h00

POR HUMBERTO MIRANDA

Poucas vezes, como ontem, o dia 13 de maio coincidiu com o dia das mães.

É preciso muta ginga para ser mãe negra neste país.

Os amantes do futebol pouco se perguntam de onde vem "a ginga", dita brasileira.

Vem do negro, ou melhor, da negra.

Basta uma busca na Internet para saber que, no século XVII, a Rainha Njinga (também conhecida por Ana de Sousa), comandou o território de Angola e do Congo, na África.

Seu exército lutou por mais de 40 anos contra a escravidão.

Sempre houve resistência. Njinga arrancou do domínio português seu reino Ngola e Matamba.

Em 1647, Njinga foi finalmente derrotada, mas, depois de libertada da prisão, assinou um tratado com Portugal para a reinserção do negro na sociedade africana.

Morreu aos 80 anos sendo lembrada como guerreira da causa negra, estadista e pacifista.

O nome Njinga ou ginga, em português, passou a expressar reverência a esta grande mulher nas folias de Reis, no samba e na maneira de jogar futebol dos africanos, dos afrodescendentes e dos brasileiros, e também na forma como a população negra "dribla" os obstáculos da vida cotidiana no Brasil. Ginga tem esse sentido de libertação, de tentar driblar as dificuldades, de luta, mas também de reverência à história negra e a história dos negros por liberdade, algo que deveríamos valorizar mais e mais em todas as áreas.

O corpo ginga por que a alma pede liberdade

, um lema da Capoeira. Corpo e alma associados à mesma causa, a da libertação. No futebol, essa causa primeira da liberdade, a ginga, foi afastada do campo nos últimos anos, especialmente com o aumento dos desmandos nos clubes, na CBF e na FIFA. Ficou tudo muito igual, um grande negócio controlado por oligarquias. Tanto é que os próprios times africanos foram perdendo essa referência, adaptando-se forçosamente à tática e técnica alemã, inglesa, francesa… Com o Brasil não foi muito diferente, mas ainda pode avançar se unir o que há de moderno com o que há de muito próprio ao povo brasileiro, a ginga. Não no sentido de ter que se virar a qualquer custo, mas de saber se libertar dessas estruturas que aprisionaram o futebol e a vida cotidiana.

Contudo, nesse 130º aniversário do dia 13 de maio de 1888, devemos nos perguntar sobre o sentido de liberdade atualmente: houve, de fato, no Brasil uma superação da estrutura e superestrutura da escravidão?

A meu ver, do ato oficial de 1888 aos fatos reais a distância continua enorme. A falta de respostas à inclusão social de negros e de negras continua gritante, mas isso tem pouco a ver com o período da escravidão. Desde 1950 já devíamos ter superado o passado, Afinal, foi naquele momento que demos o principal salto para a modernidade industrial do país e erguemos o Maracanã como símbolo de uma nova era esportiva. Só que o problema racial persistiu e está bem aqui, no presente, transfigurado em desigualdade. Está nas novas arenas esportivas sem povo voltadas às plateias, nos projetos de gentrificação dos estádios e dos espaços urbanos, na redução dos espaços públicos, no sumiço dos campos de várzea… e na desvalorização e criminalização da ginga.

De Zumbi a Marielle, a exclusão e as expulsões, a violência e as execuções contra a população negra estão no centro da questão da desigualdade geral. Tolera-se moralmente o pobre, mas a intolerância com o negro e a negra é assustadoramente imoral. Não é que viveremos a barbárie, ela tem sido historicamente a forma de manter essa desigualdade em termos vis, insanos e imorais. São barbáries cotidianas.

Impedem, inclusive, a ginga negra de aparecer e crescer na política porque esta tem sido dominada por velhas e novas oligarquias que se apropriam das rendas públicas.

A Abolição de 1888 devia ser chamada então de Abandono legal. A liberdade do abandono socialmente consentido foi o caminho seguido pelo Estado e pelas instituições brasileiras para negar a liberdade de fato e de direito ao negro. Até hoje, a maioria dos negros e das negras habita de forma permanente ou os cárceres ou as ruas. Vivem clandestinamente no Brasil e sujeitos à violência pública e privada e a todo tipo de privação de liberdade. Da rua vai ao campo de futebol, como jogador, mas não sem antes sofrer humilhações cotidianas. Alguns se tornaram estrelas, como o Rei Pelé, em reverência à ginga (Njinga). Outros negam sua condição de negro, depois de endinheirados, ou passam a investir em projetos sociais, em reverência à ginga (Njinga). Tudo que significar inclusão do negro e da negra é ginga.

Por falar em exemplos, as três grandes lideranças negras do século XX, Gandhi, Luther King Jr e Mandela, foram pacifistas. Então quem promoveu as barbáries e ainda as promove? As lutas contra a desigualdade geral só fazem sentido se entendermos o seu elemento mais radical: o abandono dos negros e das negras (da ginga) por todo o país.

Seja pela arte, cultura, religiosidade, pelo futebol, e pelos exemplos de superação, negros e negras seguem demonstrando formas de solidariedade perante a injustiça, a intolerância e o abandono o tempo todo. Essa resistência coletiva (ginga) nas vias, presídios e favelas serve de fundamento para que se construa uma verdadeira nação, aquela que abraça e jamais abandona um filho seu.

No dia das mães, acolher a causa de negras e de negros é o gesto de amor diligente de que mais necessitamos. Afinal, um filho negro não foge à luta (à ginga).

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/