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Blog do Juca Kfouri

Um e outro

Juca Kfouri

29/12/2016 22h55

POR LUIZ GUILHERME PIVA

O estilo do jogador é a expressão de sua personalidade.

Veja-o em ação em campo. Compare com seu jeito de falar, com seu comportamento e sua postura fora de campo, seu olhar, seus gestos.

É uma identidade só. A mesma persona dentro e fora do gramado.

Pense no Garrincha, no Tostão, no Rivellino, no Ademir da Guia, no Zico, no Romário, no Ronaldinho Gaúcho, no Neymar.

Mas também nos menos famosos.

E também nos de fora: Zidane, Maradona, Messi, Iniesta, Cruijff, Cristiano Ronaldo.

Vá pensando e testando – é batata! Todos são a mesma coisa dentro e fora do campo.

Menos um.

Pelé.

O que se vê em campo não é somente diferente do que se vê fora: é completamente estranho, avesso, antípoda.

É outra espécie. Outro ser.

Fora, um indivíduo meio simplório, ingênuo.

Dentro de campo, porém, o que se vê é uma pantera, um leão, um guepardo – feras em plena caça, dominando as savanas, as pradarias, as florestas.

Os olhos saltados, a concentração, o arranque, a objetividade, a força muscular, a gana de um animal impondo seu poderio sobre as presas e o território.

Não há nada de um no outro.


Veja o lance contra o goleiro Mazurkiewicz em 1970, certamente o mais belo e difícil da história das Copas – e talvez da história do futebol.

A execução, em força e raciocínio, é a de um fenômeno da natureza, rasgando o espaço e o tempo, impondo-se sobre tudo e todos.

Mas não só. Há ainda o que se dá depois do lance.

O gol não saiu e, diante do mundo bestificado, impressionado, Pelé volta andando, coçando algo nos lábios ou nos dentes, sem lamentos, sem surpresas, sem caretas, com a mesma altivez e naturalidade ostentada durante todo o jogo.

O corpo e os membros rijos, em movimento pausado. Como o predador que perdeu por pouco sua presa e se reposiciona para nova investida.

Só ele está tranquilo. Porque só ele sabe que aquilo é da sua essência sobrenatural.

Então.

Agora pense no Pelé das entrevistas, das canções, das declarações, da vida social, das campanhas publicitárias.

Não são o mesmo ser, definitivamente.

Mas ambos vivem suas existências próprias dentro do mesmo corpo. Talvez como heterônimos um do outro, ao modo de Fernando Pessoa.

E talvez daí venha a distinção psicológica e de pronomes que eles próprios usam para falar de seu oposto: Edson e Pelé.

Mas é mais do que isso, porque o Edson é de uma espécie. E o Pelé, de outra.

Para nossa sorte, quem entrava em campo era o Pelé.

Fosse o Edson e talvez não passasse nas peneiras como um meia-direita tímido e burocrático.

Em compensação, fosse o Pelé o que estivesse fora de campo, provavelmente teríamos um Rei de verdade a imperar em vasta área do planeta, com poder incontestável e milhões de súditos.

Não sei você, mas eu seria um deles.
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" (Editora Iluminuras).


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/