Leis do impedimento e história do futebol por João Saldanha
Zuca Sardan
Introdução ao texto de Saldanha escrita por Raul Milliet Filho
Este texto, inédito na imprensa, foi escrito originalmente pelo autor como apresentação ao livro Na Boca do Túnel (Organização de Milton Pedrosa), Editora Gol, em 1968, um ano antes de João Saldanha assumir o cargo de técnico da seleção brasileira.
Considero esta apresentação um primor de concisão e criatividade na abordagem da História do futebol. Os que dizem que Saldanha era um intuitivo, um "prático", mero boleiro, desatento às questões táticas, certamente não acompanharam seu desempenho em toda a sua carreira de diretor de futebol, técnico e jornalista esportivo, desconhecendo, por óbvio, "Leis do impedimento e história do futebol".
Com o fim da editora Gol, Na Boca do Túnel e sua notável apresentação foram desaparecendo até mesmo em sebos. Os anos passando e texto ficou praticamente apagado da memória dos aficionados..
Em 2006, tive a oportunidade de organizar e escrever a introdução e outras partes de Vida que segue – João Saldanha e as copas de 1966 e 1970, publicado pela editora Nova Fronteira. Não titubeei e republiquei a apresentação de Na Boca do Túnel, além de vários outros artigos de João no livro.
Confesso que este pequeno texto introdutório tem um endereço certo, que há tempos arranhava minha garganta. Refiro-me a alguns críticos de fancaria, pseudoconhecedores de futebol, que covardemente aguardaram o falecimento de Saldanha para atingi-lo em seu túmulo através de perfis, crônicas, entrevistas equivocadas e pérfidas.
Estes senhores destilaram sua amargura oferecendo interpretações reacionárias sobre a demissão de Saldanha da seleção brasileira. Não pretendo perder meu tempo citando seus nomes, atitude que já tive oportunidade de fazer frente à frente. Vejam só, raros leitores, um desses moleques, colega do nosso personagem ,até hoje omite todas as denúncias feitas por João "sem medo" sobre prisões e assassinatos cometidos pela ditadura militar em suas viagens a trabalho pela seleção brasileira, como em sua última, no México, para escolher os locais de concentração da equipe na Copa do Mundo.
Nesta, o gaúcho de Alegrete saiu do sério quando recebeu a notícia do assassinato de seu amigo e ex-companheiro de Partido Comunista, em novembro de 1969, em São Paulo, Carlos Marighela. Soltou o verbo, convocando uma entrevista coletiva cujo teor foi publicado em jornais mexicanos, franceses, ingleses, italianos e de alguns outros países. Pouco depois, recusa um convite para um jantar com o ditador Médici, em Porto Alegre, e se nega a aceitar uma sugestão invasiva do mandante da tocaia que vitimou seu amigo Marighela, para convocar o jogador Dario. Responde na lata. "Tenho em comum com o presidente várias coisas: somos gaúchos, somos gremistas, gostamos de futebol e nem eu interfiro no seu ministério nem ele interfere no meu time". Quinze dias depois estava demitido.
Veja no link: https://www.youtube.com/watch?v=X3gRDhJYX2w
Em 1987, três anos antes do seu falecimento, entrevistado da vez no programa Roda Viva, afirma peremptoriamente: "Considero o Médici o maior assassino da história do Brasil. Pombas, este cara matou amigos meus. Não podia e não posso compactuar com uma situação destas. Tinha e ainda tenho um nome a zelar".
Várias outras cascas de banana e provocações que fizeram João perder a cabeça poderiam ainda ser mencionadas. Mas, por ora, fiquemos só com estas.
Voltando às táticas do futebol, alguns críticos de João Saldanha sempre o acusaram de só saber armar seus times num 4-2-4 conservador, mas esquecem, ignoram ou fingem ignorar que, em 1957, como técnico do Botafogo, armou o seu time jogando num 4-3-3 na maior parte do certame. Na partida final, contra o Fluminense, João vai além, escalando seu time num 4-4-2, com Quarentinha (o maior artilheiro da história do Botafogo), fugindo às suas características ofensivas, marcando Telê, homem a homem, durante toda a partida. As instruções de João foram claras: "Quarenta, quero que você cole no Telê. É dele que saem as principais jogadas do Fluminense". O Botafogo aplica uma goleada de 6 x 2 sagrando-se campeão carioca naquele ano. Também pudera, tinha um timaço: Nilton Santos, Didi, Garrincha e Quarentinha, dentre outros.
Na seleção brasileira, a história se repete. O primeiro ataque escalado por Saldanha foi Jairzinho, Dirceu Lopes, Pelé e Tostão, com Gérson e Piazza no meio-campo. Dirceu Lopes jogava o fino nos treinos, não repetindo essas atuações nos primeiros amistosos.
O ataque ganhou outra escalação: Jair, Tostão, Pelé e Edu. Os pseudoconhecedores de futebol, já mencionados, diziam: "Como vamos ganhar a Copa jogando neste 4-2-4?" O técnico campeão pelo Botafogo em 57 perdia a paciência sempre que ouvia tamanha estupidez. Nas eliminatórias, a Colômbia, a Venezuela e o Paraguai só atacavam com dois jogadores. Vez por outra, ousavam atacar com três. "Para que mais gente na defesa além dos quatro e do Piazza e do Gérson… Pelo amor de Deus, vamos parar com essa numerologia que só atrapalha e deixa muitos entendidos em má situação. 4-3-3, 4-2-4, 4-4-2, isso não existe mais, minha gente. Esta estória de dizer que só um ponta pode recuar é burrice da grande. Hoje o futebol exige que volte um e até quatro, desde que o bloqueio requeira. Se a podre está na zaga esquerda, que se recue o ponteiro esquerdo. Mas se estiver na direita? Continuará se recuando o ponteiro esquerdo…"
Saldanha questionava por que os dois homens do comando do ataque não poderiam voltar para recompor o meio-campo. Dizia: "O que a seleção precisa é voltar em bloco, deixar menos campo de ação para o adversário e não ter um voltador determinado, o que não se usa mais, só encerrando, quero avisar que, quando se fala em 4-3-3, não se diga que só pode ser feito pela ponta, que isso é muita burrice junta".
Imaginem só, prezados leitores, o argumento do 4-2-4 foi utilizado por vários jornalistas pseudoespecializados para combater João Saldanha. Utilizado até mesmo pelo técnico Zagallo. É sempre bom relembrar que Zagallo é contratado do Flamengo pelo Botafogo iniciativa de João Saldanha e de seu amigo Renato Estelita, que comandavam o futebol do clube da estrela solitária há anos. Esta contratação foi fechada logo depois da Copa de 1958, atravessando uma tentativa do Palmeiras de contratar Zagallo.
E vamos além, em diversas de suas crônicas João sempre repetiu que Zagallo, Gérson, Alzuguir (seu titular no Botafogo em 1957) foram os jogadores que conheceu com maior visão do jogo dentro de campo.
É meio estranho contratar Zagallo para compor o meio-campo do Botafogo em 1958, defendendo dogmaticamente um 4-2-4. Não faz sentido.
Agora vamos à cereja do bolo desta edição do Megafone do Esporte, que é o artigo de Saldanha:
LEIS DO IMPEDIMENTO E HISTÓRIA DO FUTEBOL
O treinamento do futebol, sua tática e preparação, historicamente, está dividido em 4 épocas nitidamente marcadas: antes da primeira lei de impedimento, depois do surgimento desta lei, o surgimento da segunda lei de impedimento e o surgimento da medicina esportiva e da preparação física dos jogadores.
Como muitos sabem, a lei do impedimento foi determinante das diferentes táticas e formações de jogo. Antes dela, apenas havia jogadores que corriam ou ficavam parados dentro do campo, sem posições definidas. O futebol era feio e esteve a ponto de sucumbir como jogo ou competição porque não tinha graça. Não adiantava ser um bom jogador, que soubesse driblar e dominar a bola porque um perna-de-pau qualquer, comodamente encostado perto a uma das balizas, esperava a bola chegar e fazia o gol que dava tanto trabalho ao outro que era bom jogador.
O fato de não existir "off-side" levava a que um grupinho ficasse perto de um gol e outro lá do outro lado também esperando a bola. O resultado era que não adiantava ser superior. Mas os estudiosos do assunto, em 1896, modificaram esta situação. Resolveram que 'um jogador para receber uma bola deveria ter pela frente pelo menos três adversários'. Isto foi uma autêntica revolução no futebol e principalmente na sua tática de jogo. E surgiu pela primeira vez uma definição de posições. Tão clássica que até hoje é vulgarmente usada em vários países. Trata-se daquela do 'goal-keeper', os dois 'backs', os três 'half-backs' e os cinco 'fowards'. Claro que havia as subdivisões das posições, tais como 'back' direito, esquerdo; 'half' direito, 'center-half', etc. Esta organização de jogo foi apresentada em primeiro lugar por dois clubes ingleses. O Nottinghan Forest e o Blackburn Roves, e o sistema de jogo, também conhecido por 2-3-5 durante muito tempo e de acordo com as simpatias, adotava o nome daqueles dois clubes. Mas o tempo passou e este sistema de dois 'backs' foi superado. Por quê? Porque tinha uma falha séria que impedia o jogo de se desenvolver. Impedia que a principal condição de um jogador de futebol pudesse prevalecer: o talento. Sim.
De acordo com a lei, dois beques sabidos paravam todo o ataque adversário. Lógico, se a lei dizia que o atacante, para receber uma bola, necessitava ter pelo menos três adversários pela frente, bastava que um dos zagueiros se adiantasse, no momento do lançamento, para que todo um ataque fosse destruído. Foi assim que surgiu a antiga nomenclatura de 'beque-espera e beque-avança'. O 'avança' adiantava-se e liquidava todo o mundo. O ataque tentou defender-se desta artimanha e formava em linha porque a lei também dizia que, se o atacante estivesse atrás da linha da bola, não estava impedido. Foi por isto, inclusive, que a artimanha dos beques levava a melhor e enfeava o jogo. Dois becões, mesmo grossos, paravam com facilidade os hábeis atacantes. Isto era uma contrariedade ao que há de mais puro no futebol – e o que mais deve ser defendido: o talento. Sempre o talento, que é o que desenvolve o futebol e apaixona a multidão. Por essa imposição, a lei teve novamente de ser modificada, fazendo surgir a mais importante etapa do futebol.
Reuniram-se os mentores do futebol e decidiram que a nova lei seria a seguinte: 'Está impedido todo aquele jogador que, do meio do campo para a frente, não tenha pela frente pelo menos dois adversários.' Claro que a lei também tem algumas particularidades, mas a sua essência é a questão dos dois homens necessários para dar condição de jogo. E tudo teve de ser modificado, pelo menos onde a lei foi imediatamente compreendida. Surgiu então a necessidade de mais um zagueiro. Dois só não bastavam. Aqueles dois espertalhões agora tinham também de saber jogar bola. Não bastava o artifício de um deles adiantar-se. Para deter o ataque, era preciso que os três beques se adiantassem ao mesmo tempo, e deixassem apenas o goleiro entre o atacante que iria receber a bola, para colocá-lo em impedimento. Mas essa era uma manobra perigosíssima. Antes era feita por um só. Agora teria de ser feita por três, numa fração de segundos. Um que ficasse parado e tudo iria água abaixo. Não deu certo a tática de colocar intencionalmente em impedimento o adversário e os responsáveis tiveram de pensar em outras manobras ou táticas de jogo.
Tanto na defesa quanto no ataque. Um homem chamado Chapman craniou o famoso WM como a melhor disposição e distribuição dos jogadores dentro da cancha. O jogo agora tinha de ser disputado em todas as partes do campo. Onde não tivesse ninguém tomando conta, o adversário se apoderava daquele lugar, porque, embora não fosse perto da zona do gol, era entretanto, um excelente ponto de partida para uma jogada. Do WM surgiram, sem exceção, todos os sistemas de jogo postos em prática até hoje. O 4-2-4, o 4-3-3, o 5-2-3 e outros. Sistemas estes que foram aparecendo em virtude da luta travada entre a marcação e a necessidade de se desmarcar. Os jogadores, de acordo com suas características, vão tomando posições no campo que lhes favoreça o jogo. Assim, o Zagallo preferiu ficar não muito avançado nem muito recuado para poder jogar. Seu físico e seu talento o levaram a isto. O Ademir, que era meia-armador, lançava-se mais à frente como ponta-de-lança. O Perácio também fez isto. Era meia-esquerda do Botafogo, mas aparecia sempre em velocidade na área para finalizar.
Aí já não foi mais a lei do impedimento que levou a modificações práticas. Quando o Perácio ou Ademir vinham lá de trás, em alta velocidade, chegavam na zona de chute e formavam quatro atacantes com os que lá estavam. Como o WM só tinha três zagueiros, houve necessidade de recuar mais um, ficando, assim, quatro homens na retaguarda. Mas, por que jogadores, antes da época do Perácio e do Ademir, também não avançavam em alta velocidade, vindos do meio-campo para a ponta-de-lança? O que impedia isto? Do ponto de vista das leis do jogo, nada. Rigorosamente nada. Apenas um pequeno detalhe: se antes da época do Perácio e do Ademir alguém fizesse isto, cairia morto de cansaço, o Ademir e o Perácio cansavam, é certo. Mas, muito menos. É que eles representavam uma nova etapa do futebol: a do profissionalismo, onde o jogador não é apenas um futebolista na acepção da palavra, mas um futebolista e atleta, formado em toda a extensão. A medicina foi se especializando e os métodos de ginástica se aprimorando. O que era feito em ritmo lento se transformou totalmente. O material esportivo é aprimorado todos os dias. Se participamos bisonhamente de competições em épocas antigas, foi por atraso técnico. Um exemplo? Jogamos a Copa do Mundo de 1938 com dois zagueiros, quando a lei do impedimento já havia sido modificada há quatorze anos atrás. Hoje, o futebol, evolui a paços gigantescos. A capacidade de resistência dos jogadores, sua habilidade com a bola estão criando situações inteiramente novas em relação às posições clássicas dos sistemas, que estão sendo levados de roldão pela prática do jogo. Um jogador para ser eficiente tem de saber jogar em várias posições. Tem de saber defender e atacar, e qualquer sistema moderno que pretenda ser eficiente tem de compreender que não pode ser rígido.
Estamos mais do que nunca precisando disto. O futebol é arte popular. Não podemos continuar atrasados.
Obs.: quem tiver interesse em ler duas crônicas complementares, abordando o tema da formação tática dos times, sugiro consultar "O voltador" e "Voltador oficial" publicadas em O Globo nos dias 24 de abril de 1970 e 25 de maio de 1970. A primeira crônica foi reproduzida no livro Vida que segue. João Saldanha e as Copas de 1966 e 1970
Deixa Falar: o Megafone do Esporte :edição e criação de Raul Milliet (doutor em História pela USP)
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/