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Blog do Juca Kfouri

Um, dois, três

Juca Kfouri

30/05/2016 18h00

POR LUIZ GUILHERME PIVA

1.
Ele não era importante na charanga: tocava reco-reco. Quase não era ouvido perto do tarol, do pandeiro, do pistão e do surdo na animação da torcida – que eram só algumas dezenas de espectadores nos degraus atrás do alambrado.

Mas jogo sem ele era sem graça. É que toda vez, no meio do segundo tempo, ele, fraco, magro, calado, largava o reco-reco, pedia silêncio e fazia o que era a atração principal, muito maior do que o jogo e a charanga.

Paravam todos para ver e ouvir. Jogadores, juízes, torcedores, charanga, tudo.

Ele punha as mãos em conchas ao redor da boca e soltava o grito do Tarzan do Johnny Weismuller. Aquilo levava uns 20 segundos. Ecoava ao redor do campo, reverberava nos morros, alertava pássaros e motoristas longínquos, dividia a tarde ao meio.

No final, abria a camisa e dava socos no peito magro.

Depois, o jogo, o reco-reco, o resto da tarde, agora mudada.

Era o que valia a pena.

2.
Não era o mesmo campo da história acima, mas muito parecido, numa cidade próxima.

O sujeito era agrimensor, vindo da capital para obras na região. Tornou-se autoridade local pelo respeito à sua sofisticada tarefa nas ruas, estradas, fazendas.

Viam-no com o teodolito para todo lado, demarcando fronteiras e rotas, resolvendo pendengas de divisas, delimitando e mapeando o que era ignorado ou contencioso.

Aos domingos, assíduo nos jogos, começou a ser consultado sobre impedimentos duvidosos porque uma ameaça de linchamento do bandeirinha se dissipou quando ele interveio e disse que o auxiliar estava certo. Bastou: anulou-se o gol e ninguém discutiu.

Nos muitos meses em que ficou por ali, até que as obras o levassem para outra região, era obrigatório, nos jogos, que o juiz e os bandeiras, na dúvida, olhassem para ele, sempre sentado no degrau mais alto, na linha do meio de campo.

Ele fazia o sinal com o polegar, para cima ou para baixo, para validar ou não a decisão do bandeirinha.

E ninguém discutia.

O problema foi quando ele partiu. Na primeira partida, numa polêmica, lincharam o bandeirinha. Ninguém mais quis exercer a função.

Até hoje, me dizem, jogam sem bandeirinhas. O juiz deixa que os jogadores se entendam. Não havendo acordo, acaba o jogo.

3.
Com a camisa velha do Corinthians caindo nos ombros e alcançando os joelhos, o moleque baixo e magrelo jogava bola na viela de terra sem saída ao lado da linha do trem.

Sozinho, em dois, três, quantos houvesse, entre as cadeiras dos velhos fumando, as janelas das senhoras falando, as pernas das moças crescendo, as casas descascadas, os cachorros e as poças e cacos e latas e lençóis pendurados à beira da linha.

Tudo tremia quando o trem passava. Já no apito de longe começava a correria pra tirar do varal o que desse, pra evitar que a fumaceira sujasse tudo. Com medo, o moleque parava o jogo, ficava atrás de uma cadeira, segurando a bola no peito. Ou atrás das coxas das moças, abraçando seus joelhos. Depois da fumaça, do cheiro e das tosses, bola ao chão, cigarros, janelas e moças.

Ao cheiro da poeira, da fumaça do trem e do suor do jogo, foi se somando o das pernas das moças. A inquietude pra dormir. Nem sabia por quê. Cresceu um pouco e já lhes abraçava as coxas na hora do trem, o rosto atrás dos seus quadris.

Cresceu de vez, foi ser eletricista, biscate, vendedor, jogador da várzea, o trem nunca mais passou, uma das moças, novinha, se casou com ele. Fumando na viela, olha hoje a linha parada, os molequinhos com camisas do Corinthians, um deles é seu filho. As senhoras, os lençóis, a bola. E as pernas das novas moças.

Não pensa dessa forma, mas se soubesse e pudesse, diria que o mundo e a história do mundo estão inteiros ali.

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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" (Editora Iluminuras).


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/