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Blog do Juca Kfouri

Jamie Vardy: da tornozeleira eletrônica à chuteira de ouro

Juca Kfouri

14/02/2016 11h02

POR LEONARDO DE ESCUDEIRO, do TRIVELA

Quando balançou as redes em dez rodadas consecutivas entre as temporadas 2002/03 e 2003/04, Ruud van Nistelrooy certamente não esperava que o jogador capaz de superar sua marca viria das ligas amadoras inglesas. Enquanto o holandês voava pelo Manchester United, Jamie Vardy era apenas um jovem de 16 anos que, após ser dispensado pelo Sheffield Wednesday por ser "baixo demais", começava sua passagem pelo Stocksbridge Park Steels, time de origens operárias de Sheffield. Neste sábado, o inglês quebrou o recorde abrindo o placar no empate por 1 a 1 entre Leicester e Manchester United, que deixou as Raposas na vice-liderança, com os mesmos 29 pontos do Manchester City.

  
Como ficou conhecido nas últimas semanas, diante dos gols que fazia rodada após rodada, Jamie Vardy atuou por sete anos no Stocksbridge recebendo apenas 30 libras por semana, enquanto trabalhava simultaneamente em uma fábrica em um turno de 12 horas. Entretanto, em meio à dificuldade própria de se atuar em uma equipe tão abaixo na pírâmide do futebol inglês, o atacante teve que lidar com percalços específicos que ajudaram a forjar o jogador capaz de marcar em 11 rodadas seguidas da Premier League.

Allen Bethel, presidente do Stocksbridge, lembra de um episódio em especial em que a personalidade aguerrida de Vardy ficou evidente. Com apenas 18 anos, o atacante já se destacava nas partidas do modesto time de Sheffield. Na final de um torneio local, o hoje artilheiro do Campeonato Inglês fazia um grande primeiro tempo, e os adversários só viam uma opção para pará-lo.
"O Jamie havia os mantido muito ocupados no primeiro tempo, e eu tinha aparecido no gramado para tomar um chá quando ouvi a conversa de intervalo deles. Eram homens uns dez anos mais velhos que ele e terminaram a conversa dizendo: 'chutem-no, parem-no, apenas matem o desgraçado'", relembrou Bethel, em entrevista ao jornal Daily Express. "Ele apanhou terrivelmente deles, mas, naqueles 45 minutos, nenhuma vez sequer ele chutou, reclamou ou olhou para o banco pedindo para ser substituído", destaca o presidente.
"Maioria dos jogadores de 18 anos teria se acovardado com isso, especialmente alguém tão magro como ele, mas apenas se resignou e continuou a fazer o que fazia. Vencemos confortavelmente. Dava para dizer já ali que ele tinha algo de especial", analisa Bethel.

Fora de campo, Vardy tem em seu currículo incidentes que acentuam seu lado defeituoso, como pode acontecer com qualquer ser humano. A maneira como lidou com seus erros, no entanto, revela uma conscientização e uma resiliência raras que ajudam a entender a figura do artilheiro do Leicester.
Em 2007, quando tinha 20 anos, envolveu-se em uma briga de bar. Ele saiu em defesa de um amigo, deficiente auditivo, que era agredido e acabou sendo criminalmente condenado. Ele teve que usar uma tornozeleira eletrônica por seis meses, permanecendo em prisão domiciliar das seis horas da noite às seis da manhã. "Ele não começou a briga, mas a terminou", descreve o presidente do Stocksbridge. Após o incidente, Vardy passou por uma rotina apertada, tendo que correr do treino para casa, cumprindo a imposição sobre o toque de recolher.
"Não tenho orgulho do que fiz, mas me levantei e o defendi, o que eu sempre faria por um amigo, e isso acabou me encrencando um pouco. Essa é uma das coisas que me fez a pessoa que sou hoje. Foi difícil, isso tem um efeito na sua família, tendo que ficar constantemente em casa porque não era permitido sair. Foi duro não poder fazer o que qualquer rapaz normal de 20 anos estaria fazendo, saindo e tal", relembrou Vardy em entrevista logo após sua primeira convocação para a seleção inglesa, em junho deste ano.

Mais recentemente, o atacante do Leicester se envolveu em outra polêmica extra-campo. Em agosto, foram vazadas imagens de Vardy ofendendo racialmente um japonês enquanto jogava pôquer em um cassino. Não é possível ter certeza da sinceridade de seu arrependimento, mas o atleta desculpou-se pessoalmente com a vítima, ofereceu-se para fazer uma doação a uma instituição da escolha do homem, retratou-se com o companheiro de clube Shinji Okazaki, japonês, além de afirmar publicamente: "Foi um erro lamentável de julgamento pelo qual eu assumo completa responsabilidade e aceito que meu comportamento não foi o que se espera de mim".
Alguns meses depois, Vardy mantém a grande fase dentro das quatro linhas. O recorde de 11 jogos consecutivos marcando gols na Premier League é histórico por si só, mas ganha ainda mais peso acompanhado de alguns outros numéros. Se balançar a rede contra o Swansea na próxima rodada, alcançará um número antes atingido na primeira divisão inglesa apenas por Jimmy Dunne, do Sheffield United, na temporada 1931/32 – melhor marca do torneio desde a sua primeira edição, em 1888/89. Além disso, o tento do empate contra o Manchester United por 1 a 1 neste sábado foi o 14º do goleador na competição, o que o fez assumir o título de maior artilheiro do Leicester em uNOTma temporada de Premier League. E isso ainda em novembro.
Não dá para projetar por quanto tempo Vardy manterá sua sequência, se sua carreira continuará no patamar alcançado nos últimos meses ou se os Foxes se manterão lá em cima na tabela. Muitos obstáculos surgirão pela frente. O que se sabe é que capacidade para lidar com adversidades Vardy tem.

NOTA DO BLOG: Ao visitar o Arsenal, o líder Leicester (pronuncia-se Léster), saiu na frente num primeiro tempo maluco, com ótimas chances dos dois lados, mais dos donos da casa, vice-líderes a cinco  pontos do primeiro colocado.

De pênalti inexistente, Vardy fez 1 a 0 no fim dos 45 minutos iniciais.

Como errar para um pequeno é sempre raro, aos 7 do segundo tempo o assoprador de apito inglês expulsou Simpson e deixou o Leicester com 10.

O intenso bombardei0 do Arsenal culminou no empate, aos 24, com Walcott, que entrara aos 15.

O empate passou a ser ótimo para os líderes e para o blogueiro que apostou um jantar com o Zé Trajano, com a vantagem do placar igual.

Mas só um milagre manteria o resultado.

Insatisfeito com a igualdade, Trajano blasfemava ao chamar o Leicester de time de rúgbi.

Só dava Arsenal, mas os milionários londrinos esbarravam no goleiro Kasper Schmeichel ou na falta de pontaria.

Jogadores de rúgbi?

Pois numa jogada de rúgbi, falta para o Arsenal na intermediária, bola na área aos 49 minutos, na cabeça de Welbeck, há 10 meses sem jogar, há 13 minutos em campo, para virar.

Vou pagar o jantar.

Futebol é uma coisa de louco mesmo.

 

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/