A ponta do iceberg
Por Fernando Lattman-Weltman**
O cotidiano brasileiro, vivido pela esmagadora maioria, silenciosa, também sofreu violências e indignidades
O atual transe de rememoração do golpe de 1964, com seus contornos de resgate histórico, catarse, disputa pela memória coletiva, e, por último, mas não menos evidente, ajuste de contas, é compreensível, embora não necessariamente claro.
Talvez a dimensão simbólica da marca de 50 anos, talvez os efeitos não previstos da nossa transição para a democracia — e do papel nela desempenhado pela Lei de Anistia —, mas certamente também o atual momento político e ideológico, tudo parece contribuir para polarizar, e até mobilizar as mais diferentes tribos em torno do 31 de março (ou 1º de abril). Até certa Direita, que há pouco tempo questionava-se se ainda existia, resolveu dar as caras e se assumir.
Em meio ao processo, gostaria de chamar a atenção para a insuficiência do foco praticamente restrito das reportagens e análises ao que me parece ser apenas a ponta desse iceberg: o esclarecimento final do enredo macabro das terríveis violações de direitos humanos pelo aparato repressivo do Estado, à época, e sua confrontação com a luta armada.
Sem menosprezar a urgência dessa tarefa, considero igualmente imperioso se desvelar — em especial para as novas gerações — o que era o cotidiano brasileiro sob a "Redentora", vivido pela esmagadora maioria, mais ou menos silenciosa, que talvez nem tivesse uma posição tão clara e consistente em relação ao regime, mas que também sofreu com as violências e indignidades da rotina de vida sob uma ditadura.
Lembrar o medo de viver sob um Estado policialesco, ambiente ideal não somente à institucionalização do abuso e da tortura, mas também à proliferação dos alcaguetes.
Lembrar os livros queimados às pressas, por medo do index ou de mal-entendidos trágicos.
Da autocensura nos lares, nas escolas e universidades — e o temor paranóico dos provocadores e infiltrados.
Da repressão obscurantista da atividade artística. Das "caças às bruxas", listas negras, odiosas perseguições corporativas e profissionais, com base em delações covardes, pelos motivos mais torpes e mesquinhos.
Da censura ostensiva da imprensa: mão na roda para os corruptos e apaniguados pelo status quo hipócrita, que escapavam assim da denúncia e da investigação jornalística.
Da Justiça manietada, dos sindicatos expurgados e vigiados, do Poder Legislativo violentado por cassações e arbitrariedades sucessivas.
Seria bom, pois, recuperar a experiência daqueles muitos que não se posicionavam tão franca ou decididamente diante dos militares, e talvez até tenham apreciado certos aspectos econômicos ou obras da ditadura — e mesmo os que (supremo pecado!) se esbaldaram com a epopeia da seleção tricampeã de 70 —, e não obstante só podiam mesmo desprezar o regime.
Os que o suportaram por longos anos — em sentidos diferentes do verbo —, e talvez muito discretamente. Mas até sentindo frequentemente, como diria Ulysses Guimarães, verdadeiro nojo da ditadura. Assim talvez a busca por um maior esclarecimento sobre o período corra também menos riscos de ser confundida, ou diluída, ad nauseam, em juízos morais estéreis e anacrônicos — com as lentes inevitavelmente ignorantes e problemáticas de hoje — sobre as opções e indecisões dos atores históricos, no passado. Ainda mais quando o que mais importa é entender: por que tudo aconteceu, e tal como aconteceu? Como fomos aprisionados naquele enredo opressivo? Teria sido possível evitar? Pode se repetir algo do gênero? Como essa enorme ferida se abriu e por que ela não vai fechar tão facilmente?
*Em "O Globo" de hoje.
**Fernando Lattman-Weltman é cientista político e professor do Cpdoc/FGV
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/