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Blog do Juca Kfouri

A ponta do iceberg

Juca Kfouri

01/04/2014 14h00

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Por Fernando Lattman-Weltman**


O cotidiano brasileiro, vivido pela esmagadora maioria, silenciosa, também sofreu violências e indignidades

O atual transe de rememoração do golpe de 1964, com seus contornos de resgate histórico, catarse, disputa pela memória coletiva, e, por último, mas não menos evidente, ajuste de contas, é compreensível, embora não necessariamente claro.

Talvez a dimensão simbólica da marca de 50 anos, talvez os efeitos não previstos da nossa transição para a democracia — e do papel nela desempenhado pela Lei de Anistia —, mas certamente também o atual momento político e ideológico, tudo parece contribuir para polarizar, e até mobilizar as mais diferentes tribos em torno do 31 de março (ou 1º de abril). Até certa Direita, que há pouco tempo questionava-se se ainda existia, resolveu dar as caras e se assumir.

Em meio ao processo, gostaria de chamar a atenção para a insuficiência do foco praticamente restrito das reportagens e análises ao que me parece ser apenas a ponta desse iceberg: o esclarecimento final do enredo macabro das terríveis violações de direitos humanos pelo aparato repressivo do Estado, à época, e sua confrontação com a luta armada.

Sem menosprezar a urgência dessa tarefa, considero igualmente imperioso se desvelar — em especial para as novas gerações — o que era o cotidiano brasileiro sob a "Redentora", vivido pela esmagadora maioria, mais ou menos silenciosa, que talvez nem tivesse uma posição tão clara e consistente em relação ao regime, mas que também sofreu com as violências e indignidades da rotina de vida sob uma ditadura.

Lembrar o medo de viver sob um Estado policialesco, ambiente ideal não somente à institucionalização do abuso e da tortura, mas também à proliferação dos alcaguetes.

Lembrar os livros queimados às pressas, por medo do index ou de mal-entendidos trágicos.

Da autocensura nos lares, nas escolas e universidades — e o temor paranóico dos provocadores e infiltrados.

Da repressão obscurantista da atividade artística. Das "caças às bruxas", listas negras, odiosas perseguições corporativas e profissionais, com base em delações covardes, pelos motivos mais torpes e mesquinhos.

Da censura ostensiva da imprensa: mão na roda para os corruptos e apaniguados pelo status quo hipócrita, que escapavam assim da denúncia e da investigação jornalística.

Da Justiça manietada, dos sindicatos expurgados e vigiados, do Poder Legislativo violentado por cassações e arbitrariedades sucessivas.

Seria bom, pois, recuperar a experiência daqueles muitos que não se posicionavam tão franca ou decididamente diante dos militares, e talvez até tenham apreciado certos aspectos econômicos ou obras da ditadura — e mesmo os que (supremo pecado!) se esbaldaram com a epopeia da seleção tricampeã de 70 —, e não obstante só podiam mesmo desprezar o regime.

Os que o suportaram por longos anos — em sentidos diferentes do verbo —, e talvez muito discretamente. Mas até sentindo frequentemente, como diria Ulysses Guimarães, verdadeiro nojo da ditadura. Assim talvez a busca por um maior esclarecimento sobre o período corra também menos riscos de ser confundida, ou diluída, ad nauseam, em juízos morais estéreis e anacrônicos — com as lentes inevitavelmente ignorantes e problemáticas de hoje — sobre as opções e indecisões dos atores históricos, no passado. Ainda mais quando o que mais importa é entender: por que tudo aconteceu, e tal como aconteceu? Como fomos aprisionados naquele enredo opressivo? Teria sido possível evitar? Pode se repetir algo do gênero? Como essa enorme ferida se abriu e por que ela não vai fechar tão facilmente?

*Em "O Globo" de hoje.

**Fernando Lattman-Weltman é cientista político e professor do Cpdoc/FGV

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/