Copa das Confederações: a democracia em jogo
POR JORGE LUIZ SOUTO MAIOR*
Assistindo, no canal Sportv, as prévias do jogo Brasil x Japão, vi a notícia sobre uma manifestação de pessoas contrárias à utilização do dinheiro público para a realização da Copa. Na imagem, as pessoas estavam dentro de um círculo formado por policiais. E o narrador, destacando a existência do cerco, dizia: "Está tudo sob controle".
Momentos depois a imagem mostrou que houve uma dispersão dos manifestantes e que a polícia estava atirando bombas de gás lacrimogêneo. E o narrador expressava-se, preocupado, no sentido de que as bombas estavam "assustando os torcedores". Com a retirada dos manifestantes do local pela polícia, o narrador concluiu que os torcedores podiam chegar em "paz" ao estádio.
Veio, na seqüência, o corte da imagem de pessoas chegando para assistir ao jogo, fazendo festa e demonstrando-se plenamente felizes.
E, assim, tudo voltou à normalidade…
Mas, não há normalidade alguma em impedir, pela força, uma manifestação política, que era pacífica e não infringia nenhum dispositivo da Constituição brasileira. Até porque é mesmo necessário que a população brasileira, que gosta de futebol, mas que antes de tudo ama este país, tenha o direito de se indignar e de revelar as mazelas que giram em torno da Copa, sobretudo no que se refere à utilização do patrimônio público, o dinheiro do BNDES, do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e do PIS/PASEP, para o financiamento das construções dos estádios, palcos de eventos privados na Copa e depois dela, mediante concessões.
Fala-se em ganhos indiretos à sociedade pela realização dos jogos. Mas, a que preço? Ao preço da supressão da dignidade, da moralidade, da ética e da legalidade?
No que se refere à população pobre, propriamente dita, o que se tem verificado é uma política ostensiva de higienização, com afastamento da população de rua, proibição de atuação de trabalhadores ambulantes, remoções de famílias de espaços interessantes à especulação imobiliária e incentivo à prostituição, além da adoção de medidas impostas pela FIFA que afrontam a ordem jurídica nacional, que é fincada nos preceitos do direito adquirido, da supremacia dos Direitos Humanos e na racionalidade do Direito Social.
As imagens transmitidas pela TV do jogo de hoje não deixam dúvida: os pobres não foram chamados para a festa! O jornalista Juca Kfouri, com a perspicácia que lhe é peculiar, tem destacado o branqueamento do futebol, que se tem produzido, inclusive, em prejuízo da eficiência futebolística. Complemente-se que se opera uma elitização do futebol, pois este passou, definitivamente, a ser visualizado como um negócio altamente lucrativo, provocando, inclusive, um branqueamento dos torcedores. No estádio em Brasília não havia, em geral, pobres e negros. À população pobre foi reservado o resquício ditatorial de telões em praças públicas, com festejos típicos da estratégia pão e circo…
Não vou me opor a isso, pois o futebol não é um bem social de primeira necessidade. Se a iniciativa privada o vislumbra como um bom negócio e se é natural, no modelo de sociedade capitalista, que se produza esse efeito seletivo e excludente, não há resistência necessária do ponto de vista da ordem pública, até porque o afastamento do povo dos estádios pode ter o efeito benéfico de conduzir as pessoas a percepções reveladoras.
Há, por ora, no entanto, algumas questões a consignar.
Primeiro, como já dito, o apetite capitalista sobre o futebol não pode ser alimentado pelo dinheiro público.
Segundo, não se podem transferir para a esfera pública urbana, com repercussão na ordem jurídica e nas relações sociais, a lógica financeira, vinculada aos interesses de alguns, e as diretrizes organizacionais de uma entidade privada estrangeira, como, ademais, já se evidencia. Verifique-se, a propósito, o quanto o Presidente da FIFA parece estar à vontade para ditar os rumos do Brasil. Na abertura do jogo de hoje o referido senhor chegou mesmo a suprimir, de forma constrangedora, a fala da Presidente Dilma ao dar "uma bronca" na torcida que estava no estádio.
Terceiro, não se pode querer impedir, pelo uso da força policial, que as pessoas se manifestem livremente contra os absurdos jurídicos, sociais e econômicos gerados pelo advento da Copa no Brasil. O que se passou antes do jogo em Brasília, a repressão dos policiais aos manifestantes, para que não houvesse interferência nos negócios do futebol, constituiu grave atentado ao Estado Democrático de Direito, pois a Constituição consagra, expressamente, que a ordem econômica deve respeitar os ditames da justiça social, assegura a liberdade de expressão e traz como preceito fundamental a preservação da dignidade humana.
A grande questão é que não se pode permitir que o maior legado da Copa seja a supressão da democracia, que fora duramente conquistada com o sacrifício de muitas vidas.
Em suma: a democracia está em jogo. Sairemos vencedores?
*Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP.
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/