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Blog do Juca Kfouri

O tempo em que Tostão valia mais do que Pelé

Juca Kfouri

26/01/2013 00h05

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Deixa Falar: o megafone do esporte espaço de debates que sai quinzenalmente, sábado sim, sábado não, aqui no blog do Juca , no Literatura na Arquibancada e na Carta Maior, debatendo o esporte em geral e o futebol em particular, dialogando com a História, Política, Música, Economia, Literatura, Cinema, Humor, apresenta nesta sua quinta edição, artigo de Marcos Alvito.

Por Marcos Alvito

O tempo em que Tostão valia mais do que Pelé

Para mim não havia dúvida, era fato incontestável: Tostão era melhor do que Pelé. Até que Pelé tinha seu valor: fazia jogadas insinuantes, penetrava com facilidade nas defesas e perto da área ou dentro dela era quase infalível. Mas Tostão era maior do que ele, pelo menos no meu time de futebol de botão. Pelé era uma "vidrilha", isto é, uma tampa transparente de relógio de pulso transformada em goleador. Por ser transparente, ficava bonito ver a cabecinha de Pelé recortada do jornal e devidamente colada no "meu" jogador. Tostão, por sua vez, era um botão de galalite brilhante, amarelo. À época eu nem pensava como se fazia o galalite, mas pesquisando descobri que o precioso material é um derivado, vejam só, do leite. São necessários de 15 a 85 galões de leite para fazer um miserável quilo de galalite. É claro que isso me faz lembrar a antológica frase de Gentil Cardoso tentando convencer seus jogadores a praticarem o jogo rasteiro:

"A bola é de couro, o couro vem da vaca, a vaca gosta de grama, então joga rasteiro, meu filho"

Com o devido respeito, o galalite vem do leite, o leite vem da vaca… e não há jogo mais "rasteiro" do que o futebol de botão: a bola só alça vôo, normalmente, nos chutes, de resto os passes são colados à "grama".

O que eu já sabia, entretanto, é que os meus sonhos eram feitos daquele material. Aos nove anos eu admitia ser um perna-de-pau inapelável. Para compensar tornei-me um exímio jogador de futebol de botão. Com aquele time eu podia entrar dentro de campo, passar, driblar, chutar e, sobretudo, marcar gols, muitos gols. Por isso, para mim, Tostão era maior do que Pelé. Tostão era largo e alto e a sua especialidade, que o tornava temível entre os meus adversários, era chutar muito bem logo após a linha do meio de campo. Era desesperador e humilhante para os outros meninos sofrerem gols desse jeito. Imitando a vida real mais ainda, um amigo até me fez uma proposta por Tostão. O valor que oferecia era dez vezes mais do que a quantia que eu desembolsara na papelaria. De nada adiantou eu tentar lhe dizer (mesmo que eu também não acreditasse nisso), que Tostão era apenas um botão e que ele poderia comprar outro igual. Claro que sabíamos que os botões eram fabricados industrialmente, mas nenhum botão era igual ao outro. Disse ao meu amigo que não levaria vantagem sobre ele vendendo o Tostão por tanto dinheiro. Mas a verdade é que naquela época eu não venderia o "meu Tostão" por dinheiro algum.

O prédio de classe média onde eu morava era palco de um drama cotidiano. Na nossa infância as ruas de Botafogo (bairro do Rio de Janeiro) já não permitiam a sua transformação em campo de futebol improvisado. Nosso edifício não tinha playground, mas era construído sobre pilotis e o térreo funcionava como garagem. É claro que nós queríamos utilizar a garagem como palco de épicas peladas. O prédio proibiu, nós fizemos manifestação e passeata (ecos do movimento estudantil do fim da década de 60) mas não adiantou. Entre a alegria das crianças e o bem-estar dos automóveis, os pais optaram por seus veículos.

O que nos restou foi o futebol de botão. Se não podíamos jogar com os pés, jogávamos com as mãos e a imaginação. Ele tinha a capacidade de nos transportar para muito além de Botafogo. Fazíamos copas do mundo, cada um representando uma ou mais seleções, campeonatos cariocas, brasileiros e até campeonato inglês nós fizemos. Lembro de um campeonato jogado em três mesas, a maior era o Maracanã, a de tamanho médio era São Januário e a menor representava o estádio de um time pequeno.

À época, nós nem queríamos saber de onde tinha vindo o futebol de botão. Nem podíamos imaginar que ele tivesse sido criado na década de 30 e que em 1977 ele viesse a ser reconhecido oficialmente pelo Conselho Nacional de Desportos (CND) como uma modalidade esportiva. Mas sabíamos que a geração anterior à nossa jogara com botões diferentes, improvisados, muitos feitos de casca de côco. Na verdade, em cada lugar se jogava de um jeito. No nosso pequeno mundo da Rua Mariana 113, a bola era quadrada. Isso mesmo: jogávamos com um dadinho que comprávamos na papelaria. Em outros lugares usavam-se discos de plástico ou bolinhas de feltro. Tínhamos a liberdade de criar nossas próprias regras: tempo de jogo, fórmulas de campeonato (pontos corridos, eliminatórias etc), métodos de desempate (prorrogação, disputa de pênaltis). Nossos atletas eram mimados, cuidadosamente guardados em caixas de papelão, limpos com flanelas e tratados com carinho. Nossos "gramados" eram cobertos com uma fina camada de talco para os botões deslizarem melhor. Éramos técnicos, jogadores, cartolas e juízes, tudo ao mesmo tempo.

Quando meu filho nasceu, fiz questão que ele tivesse oportunidade de jogar futebol de verdade. Mas não deixei de lhe ensinar a jogar futebol de botão. Na verdade, por causa dele eu me tornei um "profissional" e nós dois jogamos juntos um campeonato brasileiro com a camisa do América, pois à época o Flamengo não tinha time de futebol de mesa.

Sim, o meu futebol de botão era agora pomposamente chamado de futebol de mesa por ter regras oficiais, campeonato, federação e o escambau. É completamente diferente. A mesa é enorme, tem quase dois metros de comprimento (c. 1,85 m) por um metro e vinte centímetros de largura. A regra mais difundida, pela qual eu jogava, permite no máximo doze toques na bola de feltro, redondíssima, sendo que cada botão só pode dar três toques na bola. Os botões são do tipo "argola", com um furo no meio e bem maiores do que eram meus craques de infância. E não são feitos mais de galalite e sim de acrílico.

Os atletas do futebol de mesa treinam duas vezes por semana pelo menos. Cada clube tem o seu CT (Centro de Treinamento) onde os mais aplicados passam horas e horas jogando uns contra os outros de olho nas competições. Sem falar nos fominhas que compram uma mesa e ficam em casa treinando chutes feito Zico fazia. Para participar dos campeonatos existem até competições seletivas, uma espécie de segunda divisão, onde eu tive que jogar até conseguir "subir" para a primeirona.

Quando eu comecei a competir, tive primeiramente que comprar um time. Mandei fazer um time amarelo, pra falar a verdade canarinho. Não colei as "cabecinhas" dos jogadores, mas mandei colocar nomes e números: Carlos Alberto, número 2, Gérson, número 8, Pelé, número 10 e, obviamente, Tostão, número 9. Confesso que nesta 2a. edição, Jairzinho começou a jogar mais do que todo mundo. Sim, porque embora seja você a mover a palheta, a crença mágica é que o botão é que está jogando. Há botões que jogam muito e outros que são irremediáveis pernas-de-pau. Ou estão apenas atravessando uma má fase…

Há campeonatos cariocas, brasileiro e, pasmem, em junho de 2012, ocorreu em Copacabana, no Rio de Janeiro, a II Copa do Mundo de Futebol de Mesa da modalidade doze toques. O Brasil sagrou-se bicampeão mundial, nada mais justo. Afinal, se o football association foi criado na Inglaterra, este futebol movido a sonho só podia ter sido inventado em terras tupiniquins.

Dois toques do Megafone:

1) Até a década de 1990, o futebol de botão foi uma grande paixão entre jovens e adultos. Um de seus praticantes mais famosos sempre foi Chico Buarque de Hollanda.

Seu time Politheama começa sua carreira como time de botão, passando com o tempo a ser também time de futebol de campo. Segundo o próprio Chico, são invictos até hoje, mesmo depois de mais de duas mil partidas disputadas.

No primeiro link, imperdível, Chico Buarque conta a história de uma partida de botão que disputou contra Chico Anysio, com Vinícius de Moraes apitando o jogo: http://www.youtube.com/watch?v=KZHqhFbdCKk

No segundo link o hino do Politheama, cantado pelo próprio autor: http://m.youtube.com/#/watch?v=pM6-ytj3CDs&desktop_uri=%2Fwatch%3Fv%3DpM6-ytj3CDs&gl=BR

2)Na próxima terça feira, dia 29 de janeiro, 19hs, lançamento do livro Histórias do Samba (de João da Baiana a Zeca Pagodinho – Matrix Editora), de Marcos Alvito, na livraria Folha Seca, Rua do Ouvidor,37, Centro- Rio de Janeiro.

Marcos Alvito – é carioca de Botafogo e Flamengo até morrer. É um antropólogo que dá aula de História na UFF desde o longínquo ano de 1984. Perna-de-pau consagrado, estuda um jogo que nunca conseguiu jogar direito: o futebol. Mas encara qualquer um no futebol de botão.

Deixa Falar: o megafone do esporte, criação e edição de Raul Milliet Filho.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/