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Blog do Juca Kfouri

As chagas de Marinho

Juca Kfouri

11/06/2009 18h35

Por ROBERTO VIEIRA

No hospital a noite é longa. Sobra tempo pra voltar no tempo, vasculhar na memória os fatos mais distantes. Silêncio no corredor. Esqueceram o remédio da meia-noite. Quem sabe dá pra dormir um pouco sem o sedativo?

O velho campo dos Aflitos. Tudo era novidade pra quem vinha de Natal. Chegou no Náutico desconhecido. Cabelos louros. Cara de menino. Futebol de craque. Um repórter tascou precipitado:

"Chegou o amigo de Petinha! Será que joga alguma coisa esse rapaz?"

Primeiro treino. Bola presa entre os pés pela lateral. Cruzando o campo inesperadamente. Os companheiros observam o doido. A bomba sai violenta, letal, no ângulo: Reservas 1 x 0.

O Recife ficou pequeno em poucos meses. Fenômeno. Agnaldo Timóteo viu o menino jogando em Recife. Ligou pro Botafogo:

"Comprem! Urgente!"

Chegou no Rio com a mesma cara de menino.

"Domingo tu entra contra o Rei!"

Antes de o jogo começar, Pelé falou pra os companheiros:

"A mina é o Galego!"

Na primeira bola, Marinho se antecipa ao Rei e mete-lhe um chapéu. Como Garrincha nas canetas de Nilton Santos. Só que agora, Nilton Santos é Marinho. E Marinho é a alma do velho Garrincha. Infernizando os santistas. Impressionando o mundo. Desempregando os zagueiros que lhe fazem cobertura.

É convocado para a Seleção. Um holandês entre os brasileiros no Mundial de 74. Leão lhe desfere um soco depois do gol polonês.

"Irresponsável!"

Leão que falhara no primeiro gol holandês de Neeskens. Sem socos.

Amigos. Violão. Birita. Acorda no meio da madrugada. Sem saber onde está. Aos poucos recorda dos amigos de aluguel, das meninas, das noitadas. Os alemães sonham em levá-lo. Paul Breitner diz não!

"Gênio na esquerda aqui basta eu"

Marinho passeia entre os astros. No Cosmos. Aos poucos vai caindo na terra.

"Hepatite C, Marinho. Alcoolismo. Ou você deixa a bebida ou nada podemos fazer por você."

Mas como se a bebida é o último refúgio para as pernas que desobedecem ao drible? Como se apenas a bebida traz o Maracanã lotado? A defesa da Colômbia fechada. O chute que sai em curva, por sobre o arqueiro?

O copo sobre a mesa observa o antigo craque imaginando outro tempo.

Riachuelo.

Petinha morreu, Marinho.

Cadê o Arthur, o Dirceuzinho, o Jair, o Krol?

Quarenta e cinco minutos do segundo tempo.

0 x 0.

A vida encara o lateral esquerdo. Bola nos pés. Rente a lateral.

A vida faz que vai e vem. O lateral estático observa. Sua filha reza.

Marinho agora é o último homem.

Um drible pode ser fatal…

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/