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Blog do Juca Kfouri

'Sálvio e Armando'

Juca Kfouri

30/01/2008 18h48

Por Roberto Vieira

 

 

 

– Pois é seu Armando, eu não entendo. O que é que o senhor tem que eu não tenho?


– Carisma meu caro, carisma.



– Mas seu Armando, foi falta do Adriano!



– Sálvio! Foi falta pros corintianos. Pros tricolores foi gol.



– Dizem que vão me suspender, botar na geladeira.



– É bem provável. Pra pensar duas vezes antes de apitar.



– Mas seu Armando, o senhor me desculpe, mas o que aconteceu domingo é fichinha…



– Diz logo. É fichinha perto do que acontecia comigo, né?



Sálvio fica calado, porém é a pura verdade. Na sua frente está um juiz que cometeu os erros mais atrozes da história do futebol brasileiro. E, no entanto, escapou ileso pra contar a história.



– O senhor não viu a mão de Wilton seu Armando?



– Vi meu amigo.



– E a de Leivinha?



– Claro, quem não viu?



– O senhor contou os pênaltis da Portuguesa?



– Um por um, mas depois fiquei pensando na vida e me perdi um pouco.



– E aquele esculacho no Müller na Copa de 74?



– Ali até eu acho que exagerei. Principalmente, porque eu falei tudo em tupiniquim.



Sálvio respira fundo e decide fazer a pergunta tão esperada:



– Então seu Armando, se o senhor errou tanto e está aqui contando história, porque é que todo mundo pega no meu pé e no seu não?



Armando pensou bem na resposta. Olhou Sálvio na sua frente. Mais um juiz que não entendia as engrenagens que movem a vida e o futebol. Por um instante achou que fosse falar a verdade, mas o instante passou rápido. Fugaz. Ele não iria entender nunca. Pra que gastar seu verbo?



Então, Armando lhe estendeu a mão e disse que aquilo tudo iria passar. Todo mundo erra. No próximo jogo todo mundo já esqueceu.



Sálvio olhou aquele vulto se afastando na rua. Incógnito. Distante. Lembrou do lance de Adriano, dos gritos da torcida. Por um momento pareceu entender a estranha metáfora do futebol, das arquibancadas, do juiz solitário no meio de campo.



Poderoso e frágil.



Meritíssimo e réu.



Por vezes, Judas.



Muitas vezes, Pilatos.



Mas sempre crucificado.


Por via das dúvidas, colocou de novo a peruca e a barba pra não ser reconhecido. 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/