A maior vítima da Copa União
POR BERNARDO PASQUALETTE*
O ano é 2021, mas poderia ser 1987. Grandes clubes se reúnem em uma liga para disputar um campeonato de futebol sem a chancela formal de uma organização filiada à FIFA. Aconteceu no Brasil em relação ao módulo amarelo da Copa União e, quase trinta e cinco anos depois, uma iniciativa muito semelhante voltou a ocorrer na recente tentativa de clubes europeus de se auto organizarem para a disputa de um campeonato continental.
Há muito ainda a ser escrito sobre o tema. Muitos críticos se referiram àformação de um "cartel de clubes", onde os gigantes europeus buscariam a concentração econômica para, não apenas eliminar os clubes pequenos, mas, antes, relegar os clubes médios a um segundo plano futebolístico.
Outro ponto também levantado foi a dissociação do futebol – esporte popular por natureza – de seus torcedores mais fiéis, tornando-o um esporte cada vez mais elitista e acessível somente àqueles cujos poder aquisitivo é capaz de fazer frente aos cada vez mais caros ingressos para as principais partidas, fenômeno que já chegou ao Brasil, mas que ainda ocorre principalmente em solo europeu.
São discussões legítimas e que intuitivamente remetem à experiência nacional de 1987. Noves-fora os problemas extracampo ocorridos no campeonato brasileiro de 1986 e a decisão da CBF em não organizar o campeonato brasileiro do ano seguinte, o fato é que o Brasil – vejam só que ironia – já protagonizou experiência muito semelhante à que se tentou esse ano na Europa.
Nem sempre somos a terra do atraso futebolístico.
A Copa União sem dúvida representou uma experiência disruptiva em termos de futebol brasileiro. No entanto, o que deveria ser o pontapé inicial da modernização do nosso futebol acabou marcado por uma ferrenha disputa judicial sobre quem é o verdadeiro campeão brasileiro daquele ano – Flamengo ou Sport.
Filigranas jurídicas à parte, uma boa (e completa) resposta a essa pergunta está no excelente livro escrito pelo diplomata Pablo Cardoso (1987: a História Definitiva – Ed. Maquinária), cuja completude e seriedade da pesquisa remetem ao leitor à atmosfera viva dos bastidores da criação e da própria disputa da Copa União.
O que nos interessa, contudo, é outro efeito daquele campeonato – muito menos visível do que a por vezes histriônica disputa entre os rubro-negros pernambucano e carioca: a "morte" de um grande clube, no rastro do que se almejava ser o primeiro passo da modernização do futebol brasileiro.
Falamos aqui do América, sete vezes campeão carioca e cujo hino é considerado por muitos como o mais belo entre todos os clubes grandes do Brasil. Tradicional equipe carioca e, por décadas considerada a quinta potência do futebol do estado do Rio de Janeiro, o América simplesmente definhou ao não ser convidado para disputar a Copa União de 1987, disputa que se daria entre os clubes mais tradicionais do país.
Explica-se: em 1986, o clube rubro havia sido o 4º colocado no campeonato brasileiro da primeira divisão, caindo nas semifinais após duas batalhas duríssimas contra o São Paulo, futuro campeão daquele campeonato e cuja dupla de ataque havia sido titular na Copa do Mundo disputada naquele mesmo ano: Muller e Careca.
Não foi pouca coisa.
Contudo, em 1987 veio a Copa União e o América (assim como o Guarani, vice-campeão brasileiro de 1986) não foi convidado a participar da disputa entre os clubes da elite nacional, sendo relegado a uma disputa secundária organizada pela CBF com clubes de menor expressão. Conte-se a história como queira, mas a verdade é que aquele foi o tiro de misericórdia em um clube tradicional fundado em uma cidade que possui outros quatro clubes considerados grandes.
Lembre-se de que na década de 1980 a fonte mais importante de recursos para os clubes eram as bilheterias, renda expressiva e que, em um país marcado por constantes crises econômicas e surtos inflacionários, significava fluxo de caixa para manter um time de futebol competitivo. De uma hora para outra, o América deixou de ter como adversário clubes como o São Paulo, Flamengo, Corinthians e tantos outros campeões de renda e público para enfrentar adversários de menor quilate.
Assim, ao invés dos grandes rivais que garantiriam ao clube rubro recursos capazes de manter um time minimamente competitivo, o América teria de enfrentar adversários de apelo popular muito menor, como o Treze de Campina Grande, o Rio-Branco-ES e o Joinville-SC, entre outras equipes que participariam do torneio organizado pela CBF.
Diante de tamanha injustiça, o América não topou ingressar na disputa e ficou o ano de 1987 sem participar de qualquer competição de nível nacional. Em 1988, voltaria a disputar a primeira divisão, mas o mundo gira e as coisas mudam. Por completo. Aquele ano "sabático" cobrou seu preço e o time do América em 1988 era diametralmente oposto àquele que disputou o campeonato nacional de 1986.
Os números falam por si: enquanto em 1986 o América obteve 11 vitórias na elite, dois anos depois seriam apenas duas minguadas vitórias – que levariam o time do honroso 4º lugar em 1986 à impiedosa lanterna em 1988.
Mais emblemáticas do que a frieza dos números, porém, são as partidas de despedida do América como mandante nos respectivos campeonatos.
Chega a ser tocante a despedida americana em um Maracanã completamente rubro em 1986, num duelo muito disputado com o tricolor paulista.
No último lance da partida, o América quase fez o gol que o classificaria à grande decisão. Saiu de campo eliminado, em um 1×1 diante de uma São Paulo muito mais talentoso.
Naquela noite de quarta-feira, 50.000 americanos deixaram o então maior estádio do Mundo orgulhosos de seu time.
Já em 1988, a história foi outra. Em seu último jogo como mandante, apenas 708 testemunhas compareceram ao Caio Martins para ver o América perder para o Coritiba por 1×0.
Em sua derradeira despedida da competição, o América perderia para o Bahia por 2×1, em Salvador.
Numa coincidência, em ambos campeonatos o América se despediu diante do futuro campeão do torneio.
Nunca mais o clube rubro voltaria a disputar uma partida pela séria A do Campeonato Brasileiro.
Faz muita falta.
*Esse texto é dedicado ao jornalista José Trajano e à fiel torcida americana("hei de torcer até morrer", sempre!).
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/